Introdução
Da mesma forma que o opressor frequentemente não reconhece o seu caráter tóxico, é compreensível que o género dominante tenha dificuldade em entender o ponto de vista das minorias. É-nos relativamente árduo compreender como o estatuto que nos é inato de nascença acarreta benefícios desmedidos que são estipulados como status quo assim que iniciamos o jogo da vida. Isto implica que o jogo está viciado a nosso favor, proporcionando-nos um leque de jogadas que, apesar de não eliminarem entraves que surgem ao longo da jornada, facilitam-nos a circunvalação dos obstáculos. Mesmo quando homens cis pertencem a minorias – avaliando a partir de outros parâmetros que não o género – esta realidade não deixa de ser verídica. Talvez seja esta a razão pela qual mulheres em filme sempre foi algo que me cativou, pois permite-me entrar em contacto com uma realidade que me é alheia e intrinsecamente intangível.
O cinema é uma arte incompleta quando não está a ser visionado pelo espetador, havendo um papel ativo por parte deste para decifrar, interpretar e filtrar aquilo que é transmitido pela obra de arte. Deste modo, pode dizer-se que o cinema é um espelho da vida, não apenas num sentido. É um espelho, primeiramente, da equipa criativa e, na fase de visionamento, é um espelho do espetador.
Inclusividade tem sido uma palavra-chave da conversa social e cinéfila há alguns anos. Contudo, é de realçar que a discussão da inclusividade não implica uma alteração tangível na representação das realidades menos comuns. É apenas um indicador do desgaste que quem passa por estas realidades sente, estando cada vez mais predisposto a fazer-se ouvir. Mas e se esta voz cair em ouvidos moucos? Pouco ou nenhum efeito terá. Daqui conclui-se que não basta dar uma voz às minorias, é necessário que a maioria esteja disposta a escutar – no cinema, sim, mas não só.
A realidade feminina é alvo de estudo desde os primórdios da sétima arte, havendo inúmeros clássicos filmes de culto que procuram explorar o papel da mulher. O termo-chave aqui é “filmes de culto”. A voz existe, ela quer ser ouvida, mas o grosso das audiências não tem interesse em escutar, empurrando-a para os circuitos mais alternativos e com público-alvo reduzido. Mas água mole em pedra dura…
… tanto bate até que fura
Com isto chego a Barbie, de Greta Gerwig. Um filme que visa apontar as expectativas que a sociedade tem das mulheres e, através da sátira e comentário meta, sublinhar o quão descabidas e, por vezes, infantis essas noções são. Não é um filme perfeito – não creio que o quisesse ser – e menosprezá-lo por não ser aquilo que sabemos ser impossível de alcançar apenas reforça a mensagem do filme. As nuances do feminismo são um verdadeiro redemoinho, capazes de fazer o indivíduo perder-se a ponderar a validade do movimento sem que tenha em conta a necessidade imperativa de que ele exista – quer na sua forma mais rudimentar, quer noutra forma mais sofisticada. Pessoas mais capazes e conhecedoras poderão fazer juízo acerca da validade do feminismo em Barbie. Independentemente, este teve um papel central na campanha publicitária e, portanto, no inquestionável sucesso do filme.
Semanas após a sua estreia, o filme continua a quebrar recordes na Box Office, tendo neste momento uma receita superior a alguns dos filmes mais bem-sucedidos da Marvel. Barbie conseguiu também bater o recorde de Box-Office da Warner Bros. que Harry Potter possuía há mais de uma década, mas o lucro está longe de estagnar. Após o sétimo fim de semana no top 3 da Box Office internacional o filme foi lançado digitalmente no passado dia 12 de Setembro.
Greta Gerwig
Greta Gerwig, ela própria a cara de alguns filmes de culto feministas, conseguiu dar o salto para o mainstream, trazendo com ela os ideais, a visão e a linguagem que lhe são tão característicos. Não, em termos criativos, Barbie não é um ponto de viragem da realizadora. Aqui a conquista foi a sua capacidade de entrar no mundo mainstream sem fazer desuso das qualidades que lhe permitiram criar uma voz e estilo próprio no mundo de culto. Estilo este que não consigo descrever de outra forma senão como um abraço.
Little Women foi a primeira longa-metragem da realizadora que tive o prazer de ver no grande ecrã. Recordo a experiência como se tivesse sido ontem, cheia de emoções, maus presságios, luto, mas esperança. E acolhedora, um abraço de peito cheio. A meu ver, isto deve-se ao facto de, mais do que feminista, a voz de Greta Gerwig ser humanista. A sua voz feminina dá-se a ouvir pelas vozes das suas personagens femininas, mas aquilo que é dito é de tal forma humano que qualquer pessoa – com vontade de a ouvir – consegue identificar-se. Independentemente do género, da orientação sexual, da etnia, ou de qualquer outra unidade de qualificação usada para segregar o ser humano.
Foram vários os momentos em Little Women que elicitaram reações emocionais, mas aquele que ficou mais vincado na memória foi o culminar do monólogo de Jo que, no filme, brilhantemente, termina com “mas estou tão solitária”. Esta pequena mas eficaz frase de Greta Gerwig colmata toda a jornada da personagem e surpreende o espetador com a sua aguda e desesperada honestidade. Pelo menos aqueles conscientes do nosso papel social e da forma como este difere daquele que é esperado de nós.
O propósito de Jo em Little Women é subverter o papel social da mulher. Esta jovem adulta reconhece as características que lhe são automaticamente atribuídas com base no seu género, no entanto, procura demonstrar que ela, bem como as suas semelhantes, vão muito além desse estereótipo. Contudo, a sua determinação frenética de ser bem sucedida e de ser dona da sua voz artística levam a que negligencie a sua necessidade de conexão romântica. Não necessariamente por achar que não precisa dela – apesar de, em certos momentos, eu crer que ela se convence a si mesma disso – mas porque, para a personagem, essa conexão é traduzida em dependência e fragilidade, representativa de tudo aquilo que dela é esperado e de que ela tanto se quer distanciar. “Mas estou tão solitária.” Sem pôr em causa os seus ideais, a personagem reconhece o impacto negativo que a sua convicção de princípios e entende que não tem de escolher entre independência e conexão romântica. Elas não são mutuamente exclusivas. Este é o culminar da jornada de Jo, um dos momentos de clímax do filme. Resumido numa só frase.
Com o discurso de Jo, em Little Women, e de Gloria, em Barbie, Greta Gerwig demonstra uma das suas ferramentas mais eficazes – momentos de clímax marcados por monólogos que dizem tanto ou mais com a sua simplicidade e com a forma como são representados como dizem com as palavras que são proferidas. Relativamente à simplicidade, a realização e a montagem durante estes momentos são notoriamente recatadas, deixando o foco na personagem e naquilo que está a ser dito verbal, física e metafisicamente. Estas são verdadeiras provas do requinte da realização de Greta Gerwig, a qual sabe que, por vezes, menos é mais.
Mais é mais
Dito isto, Barbie é tudo menos recatado e digo isto da forma mais lisonjeira possível. Ver Barbie é ter Greta Gerwig a pegar em nós com uma mão gigante e a brincar connosco no seu imaginário. De forma semelhante às muitas perguntas – oportunas – de Sasha no filme e à forma como Ryan Gosling descreveu como foi trabalhar com a realizadora. Isto advém da voz artística bem definida de Greta Gerwig e do uso maioritário de efeitos e de cenários práticos.
Greta Gerwig partilhou que quando era mais nova costumava fazer dioramas de cenários para brincar com as suas bonecas. Agora, com o seu renome e os bolsos recheados com o orçamento de um blockbuster, Greta teve a oportunidade de recriar esses dioramas à escala humana e de brincar com um elenco de excelência – algo que comprova o talento das estrelas, mas também a perspicácia de Greta Gerwig e de Margot Robbie, que também produziu o filme, na escolha do elenco.
Areais rosa, casas rosa, carros, barcos, foguetões, caravanas e bicicletas rosa, tanto rosa quanto se conseguiu encontrar. Mais, mais… E nunca foi em demasia. Mesmo quando levado ao extremo, Greta Gerwig dá a esse extremo intenção e agência na forma de Barbie Esquisita, hilariamente representada pela Kate McKinnon, detentora de todas as respostas que a nossa protagonista precisa. Ou quase todas.
Apesar de Margot Robbie ser, inquestionavelmente, a protagonista do filme, ela não é necessariamente a heroína da história. Da mesma forma que Ryan Gosling não é necessariamente o vilão. No que toca à estrutura narrativa, Barbie foca-se repetidamente na força em números, na irmandade. Tal como Barbie aponta no terceiro ato, todas as vitórias até então alcançadas foram graças a um esforço coletivo. Cada personagem teve o seu cunho pessoal insubstituível e merece ser incluída na festa de celebração. É Noite de Barbies e toda a gente é bem-vinda. Mais é mais, e inclusividade é um dos temas principais do filme.
Mas se Barbie não é a heroína da história, então o que a torna a protagonista? O facto de ser a versão estereotipada da boneca? Não, o que a coloca no centro narrativo é a sua jornada individual, adjacente mas independente da jornada em que as restantes personagens embarcam.
“Ela não está morta.”
A primeira instância na sequência de obstáculos ocorre durante a “festa de arromba gigante com todas as Barbies e uma coreografia e uma canção à medida” quando a Barbie questiona “Alguma vez pensaram na morte?”. O que é dito não é ponderado, mas sim algo que escapa por entre os lábios da personagem, sem qualquer objetivo ou razão. Um pensamento intrusivo. O momento é menosprezado pelas personagens e o filme retoma o seu rumo, exceto pelo facto de que Greta Gerwig escolhe permanecer num grande plano da Barbie, a qual retoma a coreografia onde esta foi interrompida, mas com confusão e dúvida presentes no seu rosto.
O conceito de morte deveria ser completamente incompreensível para as Barbies visto que estas, devido à sua natureza, não nascem, crescem nem morrem. O facto da Barbie pensar pela primeira vez na morte é indicador da crise existencial que se avizinha, mas o que realmente sobressai é o facto de que todas as Barbies e Kens não só conhecem o conceito, mas compreendem que é um tabu, algo sobre o qual não se deve pensar (pelo menos de acordo com as normas ocidentais). Pensar na morte implica pensar na efemeridade da vida, algo que, mais uma vez, não deveria ser um conceito para as Barbies. E pensar no inescapável assassino que é o tempo conduz à ponderação do propósito de cada um, o mérito das nossas conquistas e a inevitável sensação de que estamos a deixar a vida escapar-se por entre os dedos. Mas não as Barbies, pois elas têm os seus objetivos cumpridos, são premiadas adequadamente e estão a viver “o melhor dia de sempre. Como foi ontem, como será amanhã e como será o dia depois de amanhã e até as quartas-feiras e todos os dias de agora até sempre”. Isto também é verdade para a Barbie, no entanto, acaba por deixar de ser suficiente.
No segundo ato, a Barbie Estranha afirma convictamente: “Ela não está morta. Só está a ter uma crise existencial”. Os conceitos de existencialismo e morte são abordados novamente, mas desta vez com leveza e até mesmo em tom jocoso. Durante o primeiro ato, o Mundo da Barbie e o Mundo Real misturam-se e uma das consequências é a banalização daquilo que no início do filme foi motivo para interromper momentaneamente a narrativa. Será que a humanidade está inescapavelmente destinada a questionar a sua existência, propósito e longevidade? Será esse o legado que vai deixar no Mundo da Barbie? Será isso, no final de contas, algo assim tão negativo?
O Mundo Real
O momento em que a Barbie se senta numa paragem de autocarro para tentar encontrar a humana que está a brincar consigo é dos meus momentos preferidos do filme. Primeiramente, devido à forma como cena casa o normal com o surreal. O contexto inicial da cena é completamente desprovido de realismo, no entanto, sentar-se numa paragem de autocarro para organizar os seus pensamentos é das coisas mais humanas que a Barbie faz ao longo do filme. Mas a sequência não se fica por aqui. Depois de se recentrar, a Barbie tem a oportunidade de observar algumas das facetas da humanidade. Não o faz de um modo objetivo, ou desconectado. Margot Robbie escolheu imbuir o momento com empatia, compaixão e genuíno interesse, sem sombra de sátira ou comédia. Vemos a linguagem de Greta Gerwig a brilhar mais uma vez – simples, emocionante, um abraço. O momento conclui com a Barbie a deparar-se com uma senhora sentada ao seu lado. Segundos depois de se aperceber da sua presença, a Barbie afirma “É tão bonita.”, ao qual a senhora responde “Eu sei.”. Esta simples troca de palavras, de forma semelhante à frase “Mas estou tão solitária.”, está carregada de significado.
A Barbie quer “ser bonita novamente”, mas o que é a beleza? A senhora não vai de encontro à ideia de beleza da boneca – beleza essa que a levou a viajar entre Mundos para a recuperar – no entanto, quando se depara com a beleza do envelhecimento a Barbie reconhece-a e, para o seu espanto, a senhora demonstra a confiança que a protagonista procura reaver. Dizem que não há coragem sem medo, haverá confiança sem imperfeição?
Se a frase “Alguma vez pensaram na morte?” é uma premonição da crise existencial da Barbie, o momento na paragem de autocarro é uma premonição do desfecho do filme. Enquanto se afasta da paragem de autocarro, a Barbie olha de relance para a senhora, em admiração. Em consonância com o motif de What Was I Made For, de Billie Eilish, este gesto sugere ao espetador que talvez a Barbie não esteja destinada a voltar ao que era, mas sim a evoluir para algo mais humano, complexo e efémero. Subitamente, envelhecer – sinónimo de morte e antónimo de beleza tradicional – passa a ser uma aspiração da Barbie, ainda que ela não se aperceba disso de imediato.
Gloria explica a Barbie que “é a vida. Tudo muda.”, algo que a protagonista descreve como ”assustador”. Neste momento a Barbie ainda está em busca da vida perfeita que tinha no início do filme. O seu Mundo perfeito está em risco, a sua aparência “perfeita” está a mudar e o seu papel no mundo está a ser posto em causa – em grande parte por ela própria. Ao perder os alicerces da sua vida, a Barbie começa a reavaliar o seu valor com base na sua incapacidade de recuperar o que perdeu e de se adaptar à sua nova realidade. Porque a mudança é assustadora e se antes ela era “perfeita”, mudança implica a transformação em algo inferior.
Contudo, com trabalho de equipa tudo acaba por voltar à normalidade no Mundo da Barbie, incluindo a sua confiança e auto-estima. Mas a jornada da Barbie mudou-a e introduziu-a a conceitos e ideias que não lhe permitem simplesmente calçar os seus tacões altos e retomar a sua vida composta de sequências infindáveis de dias perfeitos. Este já não é o final que ela deseja, pois ela sabe que não é perfeita e, confortável com a realização, entende que já não pertence ao Mundo perfeito da Barbie.
No desfecho do filme, Ruth Handler relembra: “os humanos só têm um fim. As ideias vivem para sempre, os humanos nem por isso”. A Barbie mudou. A sua visão do mundo e de si mesma mudaram, mas isso já não a assusta. De facto, a ideia de experienciar coisas novas enchem-na de entusiasmo e esperança. Novas emoções, novos desafios, novos obstáculos, novas mudanças e, eventualmente, a derradeira experiência final da vida.
Conclusão
Barbie celebra feminismo e inclusividade, apontando as mudanças, dúvidas, medos, conquistas e emoções que todos sentimos ao longo das nossas vidas efémeras e em constante transformação. Não importa o quão diferenciamos uns dos outros, todos temos as mesmas inseguranças que advêm, com a nossa natureza humana. Novamente, mais do que feminista, é um filme humanista, merecedor de todo o apreço que tem vindo a receber.
Texto escrito por Baldaia.