Introdução
O filme O Ornitólogo acompanha Fernando na sua jornada de redescoberta numa densa floresta, a qual o guia de local a local, encontro a encontro, roubando-lhe partes íntimas da sua identidade à medida que lhe atribui novas.
As noções de redescoberta e de transformação podem ser entendidas como mutuamente exclusivas – a primeira implica o retorno a um ponto anterior, enquanto a segunda implica um desvio numa direção diferente. No entanto, para João Pedro Rodrigues, uma não pode existir sem a outra.
1. A Transformação
1.1. … Como Meio Para a Autodescoberta
O ser humano é um ser social, em contacto constante com a civilização que o rodeia. Por não sermos um elemento isolado, encontramo-nos em movimento contínuo entre diferentes círculos sociais, locais e situações. Este contacto quase ininterrupto com experiências diferentes das nossas – mais do que permitir – garante a mudança adaptativa do indivíduo face aos diferentes cenários em que ele se envolve. Numa primeira instância ocorre a interiorização de parte daquilo que os outros contribuem durantes ditas interações e, numa perspetiva mais íntima, o indivíduo social aprende consigo mesmo – quer através das lições retiradas das suas experiências passadas, quer através da procura consciente de conhecimento novo.
É por esta razão que quando visualizo mentalmente o percurso da vida de uma pessoa, este não se materializa numa linha reta horizontal. É mais comumente representado por uma linha curva vertical. A forma curva deve-se às mutações físicas, mentais e de personalidade a que nós estamos sujeitos (e a que nos sujeitamos) e a direção vertical deve-se à noção de evolução, à esperança de que, com cada lição, nós nos tornamos pessoas melhores. Contudo, considerando aquilo que retirei d’O Ornitólogo, atrevo-me a afirmar que João Pedro Rodrigues não aceita como factual a ligação direta que estabeleço entre a transformação e a evolução. Pelo menos no que diz respeito a uma evolução positiva.
Deste modo, o realizador inicia o seu filme com Fernando, o protagonista, como representação do indivíduo social, pertencente a uma civilização desenvolvida. É verdade que ele se encontra aparentemente distante da sociedade, no entanto os seus pertences são nada mais do que uma extensão dessa mesma sociedade.
Telemóvel, carro, documentos de identificação e medicação – resquícios da vida urbana que João Pedro Rodrigues gradualmente elimina. Durante a primeira visualização do filme, este despir tecnológico do protagonista é facilmente atribuído aos clichês de filmes de terror. Neste género cinematográfico é habitual ocorrer o isolamento dos personagens para que haja um número reduzido de opções de escapatória. E, efetivamente, esta explicação também se aplica ao filme em análise. No entanto, em retrospetiva, quando consciente do objetivo do realizador – levar Fernando a entrar em contacto com o seu verdadeiro “eu” – torna-se impossível não interpretar esta escolha como uma definição dos privilégios tecnológicos como um obstáculo ao nosso progresso enquanto humanos. Portanto, a hipótese apresentada pelo cineasta é que a nossa humanidade é gradualmente ofuscada pelas preocupações e distrações que caminham de mão em mão com o progresso da civilização. Esta transformação não resulta numa evolução positiva – num progresso – mas sim na criação de algo menor do que aquilo que somos à nascença – uma regressão. Deste modo, é necessário forçar uma nova transformação para que voltemos a encontrar quem realmente somos.
Esta opinião não é algo novo que O Ornitólogo traz para cima da mesa, sendo que a dependência das gerações mais novas dos nossos aparelhos tecnológicos é frequentemente criticada. Estes são avaliados como inibidores da interação social, bem como da evolução cognitiva e emocional que “alegamos” conseguir através desses mesmos aparelhos. Obviamente, eu não partilho da mesma opinião. Apesar de ser inquestionável a dependência que se pode desenvolver, a tecnologia não só nos equipa com uma linha de contacto direta e constante com aqueles que nos são queridos, como também nos possibilita ver para além daquilo que as nossas faculdades inerentemente humanas nos permitem. Isto contribui para uma experiência de vida mais rica e diversificada e expõe-nos a realidades às quais poderíamos nunca vir a ter acesso. Esta globalização dá-nos a oportunidade – àqueles que têm o interesse em tal – de nos transformarmos em pessoas mais conscientes, educadas, inclusivas e humanas.
Contudo, enquanto cinéfilo, estou disposto a aceitar o ponto de vista do realizador e a ter em conta a sua posição face a este tema, respeitando a importância que atribui ao exorcismo tecnológico do protagonista para a sua (re)transformação no seu “eu” máximo.
1.2. … em João Pedro Rodrigues
A transformação é um elemento constante na filmografia de João Pedro Rodrigues. Desde a evolução de Sérgio até ao Homem de Fato Preto, em O Fantasma; à forma como Odete, no filme com o mesmo nome, adapta a sua aparência física e o seu comportamento com o intuito de se assemelhar a Pedro; à representação da transsexualidade em Morrer Como um Homem; e até mesmo aos planos de borboletas, símbolos da metamorfose, na curta-metragem autobiográfica Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues?. Contudo, dos exemplos mencionados, apenas o primeiro pode ser equiparado àquilo que ocorre em O Ornitólogo. Os restantes abordam o conceito de transformação a partir das suas propriedades materiais, resultando em modificações físicas dos personagens, as quais são o objetivo final da narrativa. Em O Ornitólogo também ocorrem transformações físicas em Fernando, no entanto estas são uma mera representação visual daquilo que lhe está verdadeiramente a acontecer, da mutação espiritual que ele sofre, tal como a Figura Negra de O Fantasma.
1.3. … de Fernando em António
A transformação do protagonista ocorre de forma lenta. Esta é apresentada ao espectador através de elementos técnicos cinematográficos e de elementos narrativos, numa sequência de mortes simbólicas que permitem a Fernando alcançar o seu potencial máximo.
Em termos técnicos, são utilizados vários planos de perspetiva de aves, nas quais quem interpreta o protagonista é o próprio realizador. Quase como se a natureza conseguisse ver a verdade do personagem, o seu verdadeiro “eu”. Isto é reforçado pela dobragem completa dos diálogos de Fernando/António por João Pedro Rodrigues.
A explicação cínica desta escolha artística passa por atribuí-la à possível incapacidade do ator Paul Hamy, francês, de aprender um idioma português credível. No entanto, na minha opinião, esta é mais uma forma que João Pedro Rodrigues encontrou de demonstrar a forma como Fernando está em dissonância consigo mesmo, havendo leves discrepâncias entre a sua voz e os movimentos dos seus lábios. Se não for prestada atenção à boca do ator, é impossível aferir que a voz ouvida não é a original, sendo que o timbre desta é perfeitamente adaptável a Hamv. A desconexão é muito mais subtil do que isso, o que requer uma atenção especial do espectador.
A metamorfose de Fernando também é explorada no planeamento da sua jornada pela floresta.
Cada “morte” remove as dependências descartáveis que Fernando possui da sua vida em sociedade. Os documentos com olhos rasurados e sem a impressão digital e o momento em que Fernando queima as extremidades dos dedos são momentos simbólicos em que a sua identidade de é apagada.
Contudo, tal como foi referido anteriormente, o ser humano está em constante transformação através das suas interações quotidianas. Enquanto o realizador não demonstra interesse neste contexto de transformação social – de facto o seu objetivo é anular os efeitos da sociedade em Fernando – a noção de que nós tiramos algo das nossas vivências continua firmemente presente no filme. Fernando guarda objetos que encontra ao longo da sua jornada, como por exemplo, a corda utilizada para o prender, que ele reutiliza como cinto; os pertences que lhe são removidos no início do filme e que ele reencontra junto a um ritual desconhecido; e o apito e a navalha que ele rouba ao homem que assassina.
2. A Religião
2.1. Orientação Sexual
João Pedro Rodrigues não se limitou a utilizar a religião como metáfora (em António) e como método de estruturação narrativa (na peregrinação de Fernando). Também incorporou personagens que representam várias formas diferentes de como as pessoas vivenciam e exprimem a sua religião.
Quando Fernando nos é apresentado, não conseguimos encontrar nenhum indicador da sua fé num Deus, ou até mesmo num outro poder ou entidade superior. A forma como ele se coloca no mundo e a forma como o vê estão completamente desprovidas da religião. Desta forma, João Pedro Rodrigues estabelece a religião como necessária ao nosso desenvolvimento enquanto seres humanos, rejeitando o ateísmo (ou agnosticismo) de Fernando. Esta é uma escolha bastante arrojada, especialmente quando se considera a orientação sexual do protagonista. Isto porque a relação entre a comunidade queer e a religião está longe de se ver livre de debates e controvérsias.
Enquanto homem homossexual criado numa pequena aldeia do Norte, onde a tarde de sábado era marcada pela ida em massa à igreja, sirvo como exemplo do conflito com que grande parte dos portugueses queer se deparam. Não posso negar que não se têm dado passos na direção correta no que toca à aceitação e à inclusividade da comunidade, no entanto é impossível não atribuir os altos níveis de homofobia do país à sua devoção ao cristianismo. É comum a utilização dos valores conservadores heteronormativos, difundidos por escrituras e figuras religiosas, como justificação para práticas homofóbicas. O preconceito é disfarçado de preocupação pela vida depois da morte e a homossexualidade é distorcida para corresponder à definição de pecado. Para além de ser antiquado e descabido, isto ainda contribui para a preocupante quantidade de homofobia internalizada na própria comunidade LGBTQ+.
A mera existência de homofobia na religião predominante de um país é alarmante por si só. Ao considerar o facto de que esta religião nos é imediatamente incutida à nascença piora ainda mais a situação. Num período em que a maioria das crianças não tem qualquer interesse, ou sequer capacidade, de refletir acerca da sua identidade sexual, são-lhe casualmente transmitidas noções viciadas daquilo que é “correto” e daquilo que é “errado”. Nem sequer é preciso ir tão longe ao ponto de mencionar o castigo eterno infernal que se diz estar destinado a homossexuais, basta notar todas as medidas heteronormativas presentes nas cerimónias e nas escrituras. Consequentemente, quando uma criança inicia a sua vida romântica, fá-lo de modo que esta encaixe no molde que lhe foi ensinado, cujas bordas nem sequer são, por vezes, visíveis. Isto leva a que algo que por si só já é assustador – a exploração da nossa orientação sexual – seja acompanhado de sentimentos de culpa, medo de punição e vergonha. Deste modo, a escolha de uma pessoa de abandonar as suas crenças religiosas não é necessariamente influenciada pela sua preferência pelo racionalismo da ciência. Pode estar envolvida com o desejo de nos afastarmos de algo prejudicial à nossa vida. Por esta razão, não concordo por completo com a posição de João Pedro Rodrigues.
No entanto, não pretendo generalizar todas as pessoas devotas a uma religião, seja ela qual for. De igual modo, não desejo afirmar que é impossível aceitar uma determinada religião e, ao mesmo tempo, ter a capacidade de avaliar criticamente aquilo que esta defende, realizando uma separação pessoal entre o trigo e o joio. Tal como já foi referido, acredito que esta crença seletiva está cada vez mais em prática.
De facto, este progresso é visível em O Ornitólogo pela presença de personagens cristãs homossexuais. No filme, o cristianismo é a religião dominante, incorporada pelo casal formado por Lin e Fei, bem como por Jesus, um jovem surdo-mudo. Os dois momentos em que estes personagens aparecem funcionam como oposição máxima entre si: as mulheres são uma perversão dos valores cristãos – partem para práticas de sacrifício e de sadomasoquismo; enquanto Jesus incorpora os valores puros de altruísmo e de “amar o próximo”. O filme também faz alusão à conversão religiosa, através da transformação de Fernando, ateu, em António. Demonstra ainda o fanatismo cultista através do grupo de caretos que vagueia pela floresta e performa rituais, nos quais incluem os pertences de Fernando.
2.2. Homoerotismo
A maioria dos momentos (“mortes”) que transformam Fernando estão relacionados com experiências religiosas. Um dos aspetos mais interessantes destas “mortes” é o caráter homoerótico e/ou sadomasoquista que João Pedro Rodrigues lhes atribui.
O erotismo provou-se uma constante nas obras de arte de cariz religioso, o qual pode ser exemplificado pela escultura Êxtase de Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini. Toques convidativos, olhares suplicantes, expressões faciais prazerosas e corpos seminus – presentes em obras de arte utilizadas para imortalizar e difundir uma religião que pune a luxúria e condena o desejo carnal.
Quem conhece os filmes de João Pedro Rodrigues está ciente do homoerotismo das suas obras cinematográficas, sendo que O Ornitólogo não é diferente. O realizador faz uso dos elementos presentes na abordagem artística da religião e adapta-os à sua visão. Como por exemplo, no plano mais famoso do filme, no qual o poster do filme foi baseado, o posicionamento de Fernando relembra imediatamente o quadro de Peter Paul Rubens, The Elevation of the Cross.
O momento em que as duas mulheres chinesas amarram Fernando foi um dos que teve um maior impacto. Talvez tenha sido pelo facto de o filme ter saltado de cabeça para a cena, não havendo nenhuma indicação ou premonição daquilo que estava prestes a acontecer. Talvez tenha sido a cinematografia, uma vez que se havia formado diante dos meus olhos um autêntico quadro vivo com bondage. É verdade que a nudez é introduzida no filme logo na primeira cena, na qual Fernando nada entre as aves que observa – e que o observam de volta. No entanto, a representação explícita de bondage num homem homossexual ereto não é algo de que eu estivesse à espera. A junção do contexto religioso, da intenção de castração e sacrifício por parte das mulheres – que foram apresentadas como “boas cristãs” – com algo que a religião tradicionalmente define como “depravação sexual”, é uma escolha artística inspirada.
Mais uma vez, a religião e o erotismo encontram-se numa única obra de arte. A forma como João Pedro Rodrigues decide filmar a cena contribui para o poder que esta possui. O uso de planos longos e de uma escala de planos mais fechada cria as circunstâncias perfeitas para o voyeurismo tão típico do realizador.
3. O Observador
João Pedro Rodrigues apresenta personagens como espécimes que observam, algo que é evidente logo na primeira longa-metragem do realizador. “Mostra-me o teu lixo e dir-te-ei quem és” é um ditado popular que ganha forma ao longo do filme O Fantasma. Neste, à medida que Sérgio, um coletor de lixo, viaja pelas ruas noturnas da cidade, observa as pessoas de forma indireta – ao remexer no lixo que recolhe – e de forma direta – perseguindo um homem por quem está obcecado. Esta obsessão leva à eventual transformação de Sérgio numa Figura Negra, corrompida pela vida de que o personagem está demasiado dependente para lhe conseguir escapar. Neste sentido, em comparação, o ato de observar em O Ornitólogo é idealizado de forma menos intensa, apesar de resultar num desfecho tanto ou mais transformativo.
O filme apresenta uma trindade de observação que pode ser exemplificada com três aspetos plásticos da fotografia. Como seria de esperar, tendo em atenção o título, Fernando (tal como Sérgio) deseja observar o mundo que o rodeia, neste caso, as aves. Contudo, a sua motivação não provém de uma obsessão e ele não se vê obrigado a fazê-lo no refúgio da noite. A observação de Fernando é meticulosa, mas pura. Não apresenta uma necessidade de perseguição ou de controlo, havendo um interesse genuíno em admirar sem nunca interferir ou influenciar. Na sequência inicial do filme, este tipo de observação é identificável em planos com uma máscara representativa dos binóculos de Fernando. Ainda, a própria natureza do cinema implica o espectador como observador, também ele incapaz de interferir com aquilo que observa. Ainda que esta não seja uma escolha sua, é algo que lhe é imposto pelo cineasta, o qual decide o que o espectador pode ou não observar, em certa medida. Quanto mais ampla for a escala de planos utilizada, maior liberdade é dada ao espectador de ser seletivo em relação àquilo em que se quer focar. Por esta razão, ao inserir o protagonista numa paisagem natural, vazia de elementos que se fazem sobressair, João Pedro Rodrigues consegue manter o olhar do espectador em Fernando.
Contudo, o filme apresenta um terceiro ponto de observação através de planos aéreos e/ou picados que representam o olhar dos pássaros observados por Fernando, que também o observam a ele. Estes planos têm os seus limites desfocados, guiando o olhar para o personagem. Isto poderá estar relacionado com a autodescoberta presente no filme, com a forma como Fernando acabará por olhar para dentro de si mesmo. A distorção dos planos atribui-lhes uma capacidade de observação sobre-humana, a qual interpretei como sendo o ponto de vista ideal, aquele que Fernando (e o espectador) deve procurar alcançar. De facto, o protagonista parte numa jornada ascendente em busca dos limites da floresta, do seu verdadeiro “eu”, daquele ponto de vista superior. Nesta busca, Fernando viaja – ou é guiado – até ao local onde estavam as aves que anteriormente o observavam. Aliás, mais do que as aves, toda a natureza o observa e encaminha no sentido correto. Por vezes literalmente, como quando ele é arrastado pela corrente do rio. Assim, apesar de Fernando estar isolado, é percetível um olhar constante sobre ele.
4. O Isolamento
4.1. … em O Ornitólogo
Em O Ornitólogo, o isolamento de Fernando tem como propósito alcançar algo ideal – algo difícil, ou até impossível, de encontrar num contexto social. Primeiramente, Fernando isola-se com o intuito de observar seres vivos que vivem retirados dos grandes centros de concentração humana. De seguida, a sequência de eventos narrativos isola-o dos resquícios da sociedade que ele levou consigo para a floresta. Deste modo, o desenrolar da narrativa é realizado sobre o olhar contante da floresta – uma entidade natural, mas sinistra – que leva o personagem ao isolamento e, ao mesmo tempo, garante que ele nunca está só. Neste sentido, Fernando é um agente passivo – a ação acontece sobre ele e não devido a ele. Esta passividade é sublinhada pelo uso de planos de aves imóveis, cuja existência parece ter como único propósito o estudo minucioso de Fernando.
4.2. … Junto à Água
Um aspeto comum em filmes com protagonistas queer é a incorporação de cenas em areais ou rochedos em contacto direto com o mar ou outros corpos de água. É possível que o fascínio por estes locais seja puramente estético, no entanto a frequência com que estas cenas ocorrem levou-me a teorizar acerca delas.
Talvez estes locais onde a água e a terra se unem sejam uma analogia para todas as relações que aí se formam. Enquanto os dois elementos criam um cenário belo e natural, os personagens inseridos nesse cenário assumem a sua verdadeira natureza e comprometem-se mutuamente. A própria palete de cores consiste numa junção harmoniosa entre os tons frios da água e do céu com os tons quentes dos areais e dos rochedos.
Contudo, em O Ornitólogo, a cena que decorre na margem de um rio não tem um final feliz, terminando com o assassinato de Jesus. Fernando e Jesus criam uma ligação, ainda que esta seja apenas carnal, no entanto, a serenidade paradisíaca daquele local é rapidamente corrompida pela ganância humana. Assim, esta cena funciona como uma parábola. Um comentário à dualidade das pessoas, capazes de se posicionarem em extremos opostos do espetro do pacifismo numa questão de minutos. Fernando não hesita em abandonar a paz e o abrigo que encontra junto de Jesus, deixando-se levar pela desconfiança e pelos seus impulsos violentos.
Deste modo, voltando à temática da introspeção, os locais costeiros podem estar relacionados com o reflexo da água. Superfícies espelhadas são frequentemente utilizadas como uma representação visual em momentos nos quais personagens refletem. Desta forma, a intenção de João Pedro Rodrigues poderia ser apelar à reflexão do espectador acerca da complacência de Fernando em arruinar o único momento em que lhe havia sido mostrada verdadeira compaixão. Apelar à reflexão acerca da forma como esta viragem repentina de comportamento está presente em todos nós e acerca das consequências de nos deixarmos consumir pelos nossos impulsos irracionais.
5. O Final
De acordo com a minha experiência pessoal e com aquilo que li posteriormente ao visionamento do filme, o último ato de O Ornitólogo não é algo que o espectador comum receba com especial interesse. Toda a subtileza com que João Pedro Rodrigues constrói a primeira hora e meia é atirada janela fora quando Fernando é baleado diretamente no peito. Deste ponto em diante, o filme entra num mundo onírico, onde o realismo anteriormente presente perde todo o seu poder. Apesar de compreender a intenção do realizador de mostrar explicitamente tudo o que é tratado em plano de fundo ao longo do filme através de diferentes ferramentas cinematográficas – planos, ângulos de câmara, detalhes no guião, etc – acho que esta escolha acaba por saturar. Antes desta mudança final, o filme é a junção perfeita de uma narrativa linear de sobrevivência com uma componente metafórica de autodescoberta. Apresenta-nos questões filosóficas e religiosas, mas mantém os pés assentes na terra, permitindo-nos identificar-nos com aquilo que estamos a ver. Ainda que a parte existencial permaneça no lugar do passageiro pela maioria do filme, sinto que ela é sempre eficaz. Por esta razão, acho que o escalar exponencial desta no final do filme é desnecessário e tinge a mensagem da obra. Quando terminei o primeiro visionamento, todas as questões que me ocorreram e todos os momentos que me marcaram pertenciam aos últimos vinte minutos do filme. A minha atenção desviou-se de tudo aquilo que foi analisado durante este texto para a tentativa desesperada de decifrar o significado de toda aquela carnificina. Para a necessidade de compreender o abandono de todas as regras narrativas que o guião havia estabelecido.
Conclusão
O que despertou o meu interesse no filme O Ornitólogo foi a forma como João Pedro Rodrigues criou uma obra cinematográfica constituída maioritariamente por personagens homossexuais, sem que a orientação sexual destas fosse o foco da história ou a origem principal de conflito. Atualmente, existe um debate acerca da forma como personagens queer devem ser idealizadas. Devemos continuar a focar-nos nos problemas pessoais e nas dificuldades sociais da comunidade queer? Ou chegou a hora de criarmos filmes mais abrangentes, com temas universais, tal como é feito com personagens heterossexuais? A minha crença é que há espaço para ambos. Se o objetivo final é a igualdade, há que lembrar a enorme quantidade de filmes românticos produzidos ao longo das décadas em volta de romances heterossexuais, sendo que tal não se tornou um impedimento à criação de outros filmes com temas diferentes. Desta forma, no contexto homossexual, também é possível continuar a estrear filmes como O Fantasma e, ao mesmo tempo, apostar em obras cinematográficas mais rebuscadas como O Ornitólogo. Este último é um estudo acerca da introspeção, daquilo que nós retiramos do mundo, das nossas experiências. É um estudo acerca do papel da religião na formação da nossa identidade – conceitos existências com que várias pessoas se podem identificar, independentemente da orientação sexual.
Assim, acho que O Ornitólogo é, sem dúvida, um marco importante no cinema português, bem como no cinema LGBTQ+.
Texto escrito por Baldaia.