A imagem quebradiça capturada por uma câmara digital do início dos anos 2000. O desejo de preservar o momento mundano de umas férias de verão. Uma relíquia de um passado que acorda memórias do momento de uma mudança não percecionada. Uma enxurrada de memórias invade a mente de Sophie, que reflete sobre o verão que passou tantos anos atrás com o seu pai, Calum, na Turquia. À superfície, Aftersun parece apenas uma coleção de momentos entre pai e filha numa viagem turística corriqueira. Mas por baixo da quietude destas cenas que observamos, algo obstinado ferve, mexendo no nosso interior subtilmente. Através de pequenos momentos, Charlotte Wells constrói um retrato minucioso de um pai e uma filha, lutando entre eles e consigo próprios, capturando-nos na sua letargia onírica.
Pequenos momentos seguem-se de pequenos momentos, e o espectador observa estes dois seres humanos. Um fascínio assalta-nos desde o primeiro momento em que somos apresentados a estas pessoas através de imagens de pouca qualidade de uma câmara digital antiga. Desde o primeiro momento que observamos algo de mais complexo nelas do que a superfície nos revela, prometendo uma viagem por emoções e lembranças. Wells transporta-nos para o flash de memórias que invade a mente de Sophie, fazendo-nos sentir como se estivéssemos a viajar por elas. Quase é possível sentir o calor letárgico, o cheiro a cloro da piscina do hotel, envoltos nestes momentos simples de férias de verão, aparentemente mundanos, mas com um peso emocional que ativa as nossas próprias memórias de verões semelhantes.
Este efeito é construído através de uma câmara que se movimenta lentamente, que observa detalhes, que repousa letargicamente sobre o corpo dos atores, em superfícies, nas paisagens, no horizonte. Uma melancolia avassaladora está presente nestas imagens. Este sentimento é aprofundado através da edição de Blair McClendon, que flutua entre cenas como quem flutua nas suas memórias de infância. Verdadeiramente, Aftersun sente-se como memórias vivamente projetadas no grande ecrã, tal é o poder e a sinceridade com que as imagens são capturadas e o filme é construído. O espectador é embalado no meio destas imagens, destes olhares, destas emoções, e algo de poderoso é-lhe revelado ao longo deste percurso audiovisual.
Isto não seria possível sem as duas performances centrais ao filme, que são o seu coração. Paul Mescal é absolutamente avassalador enquanto Calum, demonstrando uma profundidade subtil no seu olhar que revela tanto e tão pouco ao mesmo tempo. Não só nos impressiona através do seu olhar, mas também através da sua corporalidade, sendo a sua presença no ecrã – os seus movimentos, as suas poses – absolutamente hipnotizante, contribuindo de uma forma potente para a beleza emocional de Aftersun. Da mesma forma, Frankie Corio também é uma revelação, surpreendendo com o seu olhar forte e curioso, incorporando magnificamente as mudanças que Sophie sente, quer consciente ou inconscientemente, no seu início de adolescência e na relação com o seu pai.
Aftersun é um filme que aparenta ser simples através da sua aparência mundana, mas que carrega em si um poder emocional tremendo, magnificamente conseguido por Charlotte Wells. Toca-nos de uma forma profunda, letargicamente flutuando de cena em cena, mergulhando-nos na sua melancolia e no seu subtil conflito que se obstina por debaixo de imagens lentas de um verão idílico.
Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.