Barbie - 4 estrelas

Barbie: O Humano Por Baixo do Plástico

4 estrelas Críticas

Ela é dos brinquedos mais reconhecíveis de sempre. A ela estão associadas ideias de felicidade, perfeição, artificialidade. Ela é tanto um símbolo de expectativas patriarcais para as mulheres como, mais recentemente, um símbolo de um certo feminismo liberal, representando o que as meninas que brincam com ela podem aspirar a ser, desde cientistas a presidentes de um país. O seu nome é imediatamente reconhecido: Barbie. Com algo envolto num invólucro de capitalismo tão plastificado, como é que sai um filme tão humano no seu interior? Entrando no mundo perfeito da Barbie, em que todos os dias são eternamente perfeitos, Greta Gerwig explora este mundo autenticamente artificial encontrando algo inquieto dentro dele que despoleta uma jornada existencial que nos surpreende.

Transpondo a sua sensibilidade idiossincrática para este filme que, no fundo, tem interesses comerciais para lá de si próprio – nomeadamente vender mais bonecas Barbie – Gerwig constrói algo que vive por si próprio. Colocando em confronto o nosso mundo dominado por homens e o mundo da Barbie dominado por mulheres, Gerwig utiliza este produto para convidar o espectador a refletir sobre questões de género de um modo criativo e surpreendentemente existencial. As duas personagens centrais, Barbie e Ken, lutam internamente e externamente contra o papel que lhes é imposto pelo mundo à sua volta, colocando assim nestas duas figuras questões que assombram a nossa sociedade atualmente.

Demonstrando o seu amor pela sétima arte, Gerwig coloca um mosaico de referências cinematográficas que ilumina este filme, constantemente fazendo-nos pensar nos musicais dos anos 40 e 50 e nos filmes de Jacques Tati. Estas referências animam o ecrã, impedindo que este filme se reduza a algo vazio. Barbie é um filme autenticamente artificial, tal como a própria realizadora afirma, ou seja, é um filme que não tenta esconder a sua artificialidade e floresce nesta, sendo possível assim que haja algo de comovente dentro dele.

É neste interior da plasticidade que se manifestam os questionamentos em que Gerwig reflete neste filme. No fundo, a boneca titular não é mais do que um ponto de partida para uma jornada existencial repleta de um cor-de-rosa irónico na qual o espectador é levado neste filme. Jornada essa que tem algo para todas as pessoas independentemente do género – sim, também é um filme para os homens (talvez até principalmente para homens). Tanto Barbie como Ken são personagens que questionam os papéis de género da sociedade. Através de Barbie, ideias de feminidade inerentemente associadas à sua figura são questionadas através de um retrato meta e autoconsciente e, da mesma forma, através de Ken, questionamentos sobre a masculinidade são manifestados. Tanto uma personagem como a outra procuram a sua humanidade que tinha sido negada por papéis de género rígidos – refletindo assim de uma forma eficaz o que realmente acontece no nosso mundo e tornando este filme surpreendentemente real.

Dando corpo à boneca icónica, Margot Robbie é a Barbie perfeita em todos os aspetos, principalmente através do seu carisma que transparece todas as suas emoções e dá humanidade a esta personagem. Robbie é tudo o que a Barbie é e muito mais, adicionando assim o humanismo que a personagem precisa para ligar todos os elementos desta parábola. No entanto, quem verdadeiramente nos chama a atenção, ironicamente, é Ryan Gosling, que é ele próprio o Ken perfeito. Através de uma certa vulnerabilidade, Gosling incorpora este homem cujo interior está em guerra entre uma ideia de masculinidade dominante e uma sensibilidade inerentemente humana. Ken é assim transformado num modelo de homem moderno em deconstrução, e talvez seja a personagem mais interessante, dinâmica, e com um tratamento mais original deste filme, especialmente pela análise feminista que Gerwig faz dele e, através dele, da masculinidade e dos seus modelos.

Estes elementos todos são orquestrados numa explosão de cores pastel (principalmente cor-de-rosa) que animam o grande ecrã durante duas horas. Greta Gerwig conjuga a sucessão de cenas dinâmicas de forma magistral, tornando este filme num espetáculo colorido que nos toca através da forma como questiona o papel do nosso género na nossa existência. É a reabilitação de um produto capitalista, a incorporação de certas críticas dentro do próprio sistema capitalista, refletindo problemáticas sociais deste sistema sem o colocar em causa, mas talvez seja mais do que isso. É um filme que, através da sua artificialidade, revela algo de belo e que mexe dentro de nós – algo que está presente nos oníricos musicais da Velha Hollywood. É um filme assombrado por uma dualidade, e Gerwig conjuga esta contradição de um produto capitalista e de uma obra de arte para produzir algo que verdadeiramente nos comove, que nos verdadeiramente diz algo, que revela o humano por baixo do plástico da Barbie, e que não é apenas algo que nos quer vender um produto (e talvez assim a tornando numa vendedora inigualavelmente eficaz).

Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.

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