Nos últimos anos, o cinema escandinavo tem-se dedicado a refletir sobre problemas contemporâneos via sátiras ou estudos de personagem acutilantes. Basta recordar o oscarizado Mais Uma Rodada, de Thomas Vinterberg, que enceta uma discussão sobre a banalização do álcool no seio da cultura dinamarquesa; o sucesso de Joachim Trier, A Pior Pessoa do Mundo, que trata a instabilidade das relações modernas na casa dos vintes, ou ainda o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, Triângulo da Tristeza, que vira do avesso a estrutura de classes.
Esta fase de introspeção resulta das convulsões sociais que radicam na novidade tecnológica e no atual panorama económico. O que faz da comédia negra Farta de Mim Mesma, a segunda longa-metragem de Kristoffer Borgli, um objeto plenamente sintonizado com esta tendência. Conta uma história de um casal de narcisistas, Signe (Kristine Kujath Thorp, em modo maníaco) e Thomas (Eirik Sæther), que competem por atenção, doa a quem doer. Quando Thomas começa a ser bem sucedido nos seus empreendimentos artísticos, Signe engendra uma forma de regressar à ribalta com potenciais efeitos mortíferos.
É um retrato tenebroso e hilariante de uma dinâmica envenenada que funciona, porque ambos são faces da mesma moeda. Interagem por necessidade, num registo ansioso que se traduz em momentos de choque, confusão ou risível desconforto. Numa das cenas mais pronunciadas, um portátil é atirado janela fora sem que haja nenhuma discussão posterior. Como ninguém ganharia nada com a desavença, remetem-se ao silêncio – a regular disfunção da relação.
Focando-me em Signe, pois é dela que deriva a carga dramática, o seu constante clamor por atenção coloca-a no caminho da autodestruição. A atenção é algo extremamente fugaz e volátil. Deriva de instante para instante, sobretudo numa sociedade caracterizada pela desconcentração e dispersão. Neste aspeto, e embora sejam pouco evidenciadas no filme, Borgli mantém latente as consequências da utilização pouco higiénica das redes sociais. Ferramenta que pode potenciar o egotismo, tornando-nos indiferentes ao outro.
Este permanente estado de ansiedade leva a um círculo vicioso incompatível com um estado de plenitude emocional. Existe uma constante necessidade de colmatar a insatisfação. O curioso é que Signe, sendo um caso sério de saúde mental, não deixa de ser também um produto do seu ambiente: os órgãos de comunicação social são coniventes com a máquina de polémicas, intrigas e novidades ocas, e as marcas capitalizam de maneiras ridículas sobre bandeiras como a inclusão.
São camadas que coexistem na semiótica de um filme de sensações. As deformações físicas e morais acentuam a visceralidade, o aspeto grotesco das matérias. Através da linguagem do terror corporal, Farta de Mim Mesma revela a fealdade de uma sociedade de contrassensos. Enredada numa corrente de eventos absurdos, com protagonistas desagradáveis, que por vezes ameaçam desfazer a relação de proximidade que se estabelece com a narrativa. Contudo, o sentido de humor de Borgli mantém-nos fascinados pelo abismo. Empenhados na interrogação do que virá a seguir.
Assim se dá mais uma firme produção escandinava, pouco dada a sentimentalismos e cordialidades. Sem com isso perder a envolvência e a capacidade de, por entre os estados de perplexidade, fazer-nos matutar. No limite, e assumindo o lado humano mais individualista, conseguimos até rever-nos em pequenas parcelas das personagens. Afinal, quem não gosta de ser amado?
O filme está disponível para streaming na plataforma FILMIN, e em exibição em Lisboa no Cinema Fernando Lopes.
Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Bernardo Freire.