Légua - 4 estrelas

Légua: Um Retrato da Mulher Trabalhadora

4 estrelas Cinema Português Críticas

Numa pequena aldeia no Norte de Portugal, uma história comum desenrola-se numa antiga casa senhorial. Emília é uma velha governanta habituada ao seu lugar social, dedicando a sua vida à manutenção da casa de férias dos seus patrões, uma família endinheirada da capital. Periodicamente, é ajudada por Ana, uma mulher de meia-idade que enfrenta o mundo com bravura. As estações passam, gestos repetem-se nesta manutenção de sistemas, mas a mudança manifesta-se sempre. Mónica, filha de Ana, sente-se aprisionada no mundo pequeno da aldeia e questiona os dogmas desse mundo. Ao mesmo tempo, Emília adoece, marcando o fim de um velho ciclo. Ana encontra-se assim como elo entre estas duas realidades, tendo de reconciliá-las dentro de si.

Com imagens languidas que tudo observam, Filipa Reis e João Miller Guerra constroem um belíssimo retrato de mudanças: rituais do dia-a-dia, mudanças e questionamentos, a deterioração do corpo. No centro deste retrato estão três mulheres, cada uma representando diferentes gerações, vivências, formas de estar e encarar o mundo. Cada uma destas mulheres é retratada na sua complexidade, fazendo com que o espectador compreenda a sua forma de ser, observando a verdade e a realidade destas mulheres.

Emília, sendo o produto de um período mais conservador, mantém as estruturas de injustiça social que permitem a uma família lisboeta ter uma casa de férias sempre pronta para as suas férias, mesmo que nunca ponham lá os pés, servindo os seus patrões com convicção. Ana, de uma geração que cresceu já depois do 25 de Abril, em que estas estruturas foram abaladas, luta pela sua emancipação, pondo em causa a sua posição como mulher de família, especialmente quando decide cuidar de Emília quando esta adoece. E Mónica, sendo de uma nova geração, rebela-se contra a vida da aldeia, explora novas vivências, a sua sexualidade, a sua identidade, procurando algo de novo que resolva as injustiças que enfrenta na sua vida.

Todas estas vivências são observadas com uma intimidade tocante. Filipa Reis e João Miller Guerra não se cingem somente a contar a história destas mulheres, mas entram no seu mundo, no seu íntimo. A luminosidade dos quartos desta casa em que habitam, as imperfeições e a sensualidade dos seus corpos, os pequenos momentos de conversas mundanas, tudo é usado para construir este retrato que envolve o espectador, assim envolvendo-o nesta realidade e nas suas dificuldades. Este cuidado no retrato destas mulheres é realçado pelas interpretações magníficas de Carla Maciel, Fátima Soares e Vitória Nogueira da Silva, cada uma encarnando as características que diferenciam e unem estas três mulheres.

Légua é um belo retrato de três mulheres que representam tantas mulheres da classe trabalhadora que verdadeiramente são os pilares do nosso mundo. Renegando a presença da família dona da casa, que apenas está presente ao longo do filme como um espetro que habita a mobília da casa, estas mulheres que normalmente habitam os papéis secundários das histórias tradicionalmente contadas são colocadas no foco da película. As suas vivências e os seus corpos são assim observadas e as suas vozes ouvidas de uma forma empoderada.

Ao mesmo tempo, é um retrato de ciclos de mudança, seja essa física ou social, humana ou natural. Através do seu lento olhar, a tudo é dado o tempo para se desenvolver e ser observado. O lento passar das estações, a sucessão dos dias de trabalho, o envelhecimento do corpo, tudo é observado na sua crueza e beleza. Os ciclos da vida são impiedosos no seu ritmo, e tal é retratado de forma austera. No entanto, do fim de um ciclo também surge a criação de algo novo. Apesar da sua crueza, Légua faz-nos olhar para este ritmo cíclico e ver o que de belo e esperançoso há nele. E é esta promessa de emancipação que torna este filme algo que se entranha dentro de nós, que nos inquieta, e nos comove profundamente.

Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.

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