Num hotel em Ofir, tensão paira no ar. Cicatrizes que não sararam, conflitos que não foram resolvidos, conversas que foram adiadas. Uma nuvem conflituosa e pesada paira sobre as cinco mulheres que são donas deste hotel que é quase como uma figura opressiva que as aprisiona. Em Mal Viver, um melodrama lentamente se desenrola, revelando pequenas feridas em cada uma destas cinco mulheres. Uma profundidade emocional vertiginosa é revelada pelo argumento e realização de João Canijo que colabora de uma forma quase simbiótica com as atrizes deste filme.
Esta colaboração entre realizador e atrizes é o que torna a sensação de assistir a este filme tão real, sendo palpável a cumplicidade íntima entre as duas partes. Através deste diálogo, as personagens e as suas aflições tornam-se mais verdadeiras. De uma certa forma, estas mulheres que observamos no ecrã deixam de ser personagens, mas sim fantasmas que possuem o corpo das atrizes que as interpretam, tal é a realidade emocional que é observável nos seus rostos, movimentos corporais, e cadência na fala (e no silêncio).
E nada é mais assombroso que a interpretação de Anabela Moreira, que interpreta (ou melhor, é) Piedade, em quem o filme se centra. A sua presença no grande ecrã, o seu andar penoso, as suas expressões doridas, tudo nos prende neste filme que incomoda, mas do qual não conseguimos retirar o olhar. A forma como Moreira incorpora a dor de Piedade faz com que o espectador seja convidado a tentar compreendê-la, sentindo a sua dor de uma forma quase insuportável. É verdadeiramente das interpretações mais impactantes do cinema português, e dificilmente será esquecida por qualquer espectador deste filme.
No entanto, as outras interpretações não são menos inesquecíveis. Madalena Almeida impressiona como Salomé, a filha de Piedade e o elemento destabilizador deste drama que reabre feridas do passado mal saradas, enquanto ela própria luta com o luto do seu pai e tenta compreender a sua mãe. Rita Blanco também assume a sua presença no grande ecrã, interpretando a matriarca da família com ímpeto, enquanto Vera Barreto incorpora Ângela, que age como a vara que tenta segurar o caos familiar que lentamente se desmorona, e Cleia Almeida traz algum humor que alivia o peso dramático desta obra-prima. Cada atriz contribui com a sua individualidade, contribuindo assim para um equilíbrio dentro do filme e uma maior imersão neste, construindo assim de forma eficaz esta família disfuncional que observamos.
Ligando todos os elementos está a imagem belíssima. A cinematografia de Leonor Teles captura cada momento de forma a acentuar toda a emoção das cenas, sendo a sua sintonia com Canijo também palpável. Seja através da luz quente que ilumina delicadamente a face das atrizes, ou o uso da estrutura do hotel para enquadrar (e aprisionar) as personagens. Cada momento de Mal Viver é elevado pela sua cinematografia. O que poderia ser um simples melodrama é tornado em algum muito mais profundo e íntimo, que comunica connosco de uma forma mais intensa.
Mal Viver funciona para o espectador como um puzzle, magistralmente orquestrado por João Canijo. Cada cena é construída minuciosamente, mas de um modo natural, não fazendo transparecer qualquer pretensiosismo. O espectador é convidado a tentar compreender estas mulheres que circulam por este espaço que parece ter vida própria – verdadeiramente, o hotel é ele próprio uma personagem do filme. Para além disso, existe um jogo feito com a sonoplastia do filme, que permite a construção de um ambiente de conflito e confusão. Dialogando com o seu filme-gémeo, Viver Mal, conversas alheias criam interferência nos momentos partilhados entre as mulheres. Os inquilinos, que protagonizam o outro filme, são como que fantasmas intrusivos, realçando a falta de intimidade que o espaço do hotel proporciona.
Para além disto, sendo centrado em mulheres, personagens masculinas também assombram a sua história. Mais em específico, o pai de Salomé, que morreu pouco tempo antes do início do filme. Este homem parece ser romantizado por estas mulheres, sendo sempre referido em termos elogiosos. No entanto, é possível também observá-lo como uma presença de um certo modo opressiva, talvez até originadora de feridas do passado. É também interessante reparar que ao longo deste filme, mesmo os inquilinos masculinos apenas são observados ao longe ou desfocados, sendo apenas as inquilinas que o espectador consegue observar em certos momentos.
Mal Viver é uma verdadeira obra-prima do cinema português. Todos os seus elementos são conjugados de forma a construir um filme de uma profundidade emocional que causa vertigens ao espectador. É um filme rudemente real e, portanto, doloroso. É um filme que entra dentro de nós, entranha-se, fazendo-nos refletir e sentir de uma forma intensa, sendo difícil abandoná-lo. A um certo momento no filme, Piedade fala de um vazio dentro dela. Mal Viver entra dentro de nós, dilacerando-nos, chegando a esse lugar profundo que existe dentro de todos nós e que alberga esse vazio (que talvez não seja um vazio).
Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.