Seca - 3 estrelas

Seca: Do Pó Viemos e ao Pó Voltaremos

3 estrelas Críticas

De costas para a pandemia de COVID-19, a humanidade prepara-se de forma mais ou menos inconsciente para lidar com a próxima grande crise: a falta de água potável. Nesta corrida contra o tempo, os estudos são cada vez mais conclusivos. É preciso distribuir melhor e fazer uma gestão apropriada dos recursos hídricos. O que hoje é um cenário distópico numa ficção italiana de Paolo Virzì, amanhã poderá ser uma sensação tangível de secura na garganta, ou pior, um completo estado de desidratação.

Em Seca, a cidade de Roma é o palco escolhido pelo cineasta para encenar uma teia de personagens que lidam com as consequências de três anos sem cair uma gota de água. O rio Tibre, outrora fonte de prosperidade, é agora um semicírculo tórrido, que se mistura na paisagem de cores quentes. Os errantes, novos e velhos, ricos e pobres, são invariavelmente afetados pela escassez e pelas alterações regulamentares. Mesmo a elite que sobrevive ao flagelo tem de lidar com a disrupção social, caracterizada por protestos, tumultos e reivindicações.

Conhecida pelas suas comédias familiares e retratos crus da sociedade, a cinematografia italiana não tem uma tradição de conjurar no grande ecrã catástrofes ambientais. Seca é, portanto, uma produção fora da zona de conforto, ainda que mantenha os holofotes virados para as dificuldades do dia a dia (característica que herda do movimento neorrealista). Não se trata de como as personagens chegaram a este ponto, mas sim de como estão a reagir ao racionamento, à lenta degradação, ao sentimento de loucura coletiva. Enquanto uns reavaliam o passado e procuram algo que se assemelhe a redenção, outros quebram por completo.

Para compor um mosaico de ansiedades, Paolo Virzì ramifica as ações das personagens até atingir uma certa estabilidade narrativa. Isto resulta em atenção e interesse sustentado, com pequenos conflitos a registar os pedidos de ajuda em uníssono. O que não previne o filme de acusar alguma falta de amplitude dramática. Sobressaltos que poderiam interferir de maneira mais contundente no fluxo dos acontecimentos. Esta animosidade evitava o ressecamento do enredo, transformando-o em mais do que um exercício satisfatório de gestão de atores, com sóbrios apontamentos de melancolia.

O elenco é composto por mais de uma dúzia de atores experientes, dedicados a habitar as fragilidades deste mundo quase real. Desempenham personagens que, na sua maioria, procuram manter alguma urbanidade na face da privação. Comportam-se de maneira relacionável, numa produção que insiste em manter os pés no solo árido, longe das sensações e próteses próprias das sociedades que vemos na ficção científica. Embora o realismo dramático da narrativa seja contornado com uma misteriosa doença do sono, que ameaça transferir Seca para terreno fantástico.

Sonolenta e desidratada, assim é a Roma de uma cineasta que imagina o futuro próximo de uma humanidade ajoelhada perante a dependência dos recursos naturais. Refletindo sobre a ironia de que, numa sociedade pautada pelo individualismo e pela ambição, acabamos todos a lutar pelo mesmo. Primeiro incautos, depois impotentes. Do pó viemos e ao pó voltaremos.

Classificação: 3 em 5 estrelas. Texto escrito por Bernardo Freire.

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