Olhando a evolução do cinema queer na última década, somos instigades a refletir sobre o lugar de fala e o que informa o nosso olhar. Fatores tão diversos como a crescente afirmação de todos os espectros individuais e coletivos das realidades LGBTQI+ que os levaram a conquistar esse lugar de fala no cinema, ou por outro lado, um acesso mais facilitado a meios de produção, permitem-nos que hoje seja cada vez mais frequente vermos um cinema de mulheres, de pessoas negras, trans, indígenas, um cinema reflexo de múltiplas realidades geográficas, de periferia. A disseminação destes cinemas leva-nos à reflexão sobre o que realmente informa o nosso olhar. Se o movimento feminista havia reivindicado um “olhar feminino” em contraponto a esse outro, masculino, branco e heteronormativo, que dominou o pensamento e as artes durante séculos, é cada vez mais legítimo e justo falarmos hoje da importância central de um novo olhar. No movimento de um novo fôlego que o cinema ganha após o período de pandemia, as presentes edições do Queer Lisboa e do Queer Porto procuram fazer justiça a um olhar queer, não polarizado, um olhar além-fronteiras.
As honras de filme de abertura este ano em Lisboa cabem à nova longa-metragem do realizador Patric Chiha. “La Bête dans la jungle”, que teve estreia na última edição da Berlinale, é uma adaptação livre do romance homónimo de Henry James e acompanha a história de John e May, que, durante 25 anos, de 1979 a 2004, dançam contra o tempo em antecipação de um misterioso evento. No elenco, o ícone do cinema francês Béatrice Dalle, e outro chamado a sê-lo, a atriz revelação Anaïs Demoustier. “Queendom” será o título encarregado de fechar os ecrãs do festival, um documentário corajoso que segue a performer Gena Marvin, artista queer russa cujas performances colocam a sua vida em perigo enquanto recusa silenciar-se perante a repressão e a guerra na Moscovo atual.
A programação do Queer Lisboa inclui este ano duas sessões especiais: o mais recente filme de Ira Sachs, “Passages”, uma tórrida história de amor a três protagonizada por Franz Rogowski, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos; e “Sisi & I”, nova revisitação histórica da figura da Imperatriz Sisi e, em concreto, da ambígua relação que manteve com a sua última dama de companhia.
Da dança (“Cidade Lúcida”, filme sobre a figura de Benvindo Fonseca, histórico bailarino do Ballet Gulbenkian), à medicina (“Oliver Sacks: His Own Life”, sobre a vida e o pensamento do neurologista e escritor que redefiniu o nosso entendimento sobre a mente), a secção Panorama voltará a espoletar a discussão sobre importantes questões sociais e culturais. Todos os filmes irão ser complementados por debates e conversas com váries convidades a divulgar proximamente. Para além do já anunciado “Arrête avec tes mensonges” (filme baseado no romance homónimo de Philippe Besson, que estará presente em Lisboa), fazem parte desta secção mais dois títulos: “Intransitivo: um documentário sobre narrativas trans”, realizado por um grupo trans-centrado que viaja pelo Rio Grande do Sul entrevistando pessoas transgénero, e a ficção “Drifter”, a qual segue o percurso de um jovem que se muda para Berlim para acabar mergulhado sem rede nas águas do hedonismo noturno.
O Queer Porto 9 tem este ano como filme de abertura o novo trabalho do realizador brasileiro Ricardo Alves Jr., que conquistou em 2021 o Prémio da Competição Queer Art no festival em Lisboa pelo filme “Vaga Carne”, assinado junto a Grace Passô. Apresenta agora “Tudo o que Você Podia Ser”, docuficção que, por meio do quotidiano e dos encontros entre um grupo de amigues de Belo Horizonte, tece um afetuoso retrato sobre a família que se escolhe constituir através do valor da amizade. Como filme de encerramento, “Commitment to Life” (na imagem), que documenta o papel central que a cidade de Los Angeles teve durante o dramático período da luta contra a epidemia da Sida, recorrendo a entrevistas, raras imagens de arquivo e de ativismo, e ações de celebridades como Elizabeth Taylor e David Geffen.
O Batalha Centro de Cinema também irá acolher uma série de sessões especiais: desde o documentário “bell hooks: Cultural Criticism & Transformation”, baseado numa extensa entrevista com a teórica norte-americana, de quem a Orfeu Negro editou este verão em Portugal o livro “Tudo do Amor”, até ao filme “Music Is My Boyfriend”, que documenta a trajetória dos irreverentes autores de pop messiânica queer The Hidden Cameras, passando pelo inventivo documentário “Feminism WTF”, que mistura ativismo político e festa intelectual, e por um dos filmes-sensação da última edição do Festival de Cannes, “Un prince”.
Os Festivais haviam anunciado anteriormente as retrospetivas de cada uma das próximas edições (Yvonne Rainer em Lisboa; Vivienne Dick e o cinema da no wave no Porto), e o filme de Olivier Peyon “Arrête avec tes mensonges”.
As competições e os restantes títulos das programações completas serão divulgados no próximo dia 7 de Setembro.