A Opinião de Bernardo Freire

A Opinião de Bernardo Freire – Balanço 2023

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Tendo abordado os melhores filmes de 2023 noutra paragem (ver o meu top 10), este é o momento de adotar a visão de um pássaro e refletir de modo macroscópico sobre a indústria cinematográfica. Seja em termos do cinema de género, o cinema português, a crescente sofisticação do marketing na sétima arte, o significado de algumas vitórias nos Óscares de 2023, ou ainda as pequenas revoluções que estão a impactar as produções contemporâneas. Mais não seja, com esta série de notas, fica o apelo à reflexão.

Com maior ou menor grau de novidade, alguns indicadores e dinâmicas apontam para o facto de o cinema se estar a adaptar a um novo paradigma. Se começar a montante, este foi o ano em que vários profissionais do setor em Hollywood irromperam em greves pelos seus direitos. Entre as reivindicações estavam temas urgentes como a melhoria das condições de trabalho, atualizações salariais e, crucialmente, limitações na utilização da Inteligência Artificial. Este último tópico tem contornos particularmente perigosos porque, como acontece com quase todos os adventos tecnológicos, carece de regulamento. Em 2024, é expectável que se materializem progressos em defesa dos trabalhadores do setor – a bem ou a mal.

Por outro lado, vemos a jusante a consolidação de experiências a respeito da distribuição de alguns filmes. Filmes como Maestro, de Bradley Cooper e O Assassino, de David Fincher, ambos catalogados pela Netflix, estrearam em sala e poucos dias depois estavam disponíveis no streaming. Esta conciliação de plataformas é positiva, pois, em última instância, confere poder ao espetador de cinema. Dá-lhe uma certa liberdade de escolha. Quando o virtuoso Roma, de Alfonso Cuarón, estreou em Portugal, corria o ano de 2018, foi exibido apenas em 7 salas de cinema (nos sítios do costume, como bem sabemos). Os horizontes alargaram, sendo certo de que este modelo curioso de distribuição continua por se afirmar.

Ao contrário daquilo a que assistimos nos Óscares de 2023, em particular com a grande vitória de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, dos Daniels. Feito que não só veio aliviar o azedume que CODA deixou no ano transato, como também deu pistas interessantes de que a Academia está disponível para apreciar novas linguagens visuais e reinventar-se. Bem precisa, se quer tirar a corda do pescoço que há cerca de uma década a tem fustigado, com o número de telespetadores a atingir um mínimo olímpico em 2021 (26,5 milhões nos EUA). Parte da solução está precisamente em descer à terra e tornar-se cada vez mais inclusiva e refletiva, aproximando-se, desta forma, das novas realidades socioculturais.

Ainda a respeito dos Óscares, 2023 foi um ano em que Portugal deu cartas. A começar pela nomeação de Ice Merchants, de João Gonzalez, na categoria de Melhor Curta de Animação. Ver o João a arrebatar a estatueta dourada por uma história tão terna e memorável não estava, de todo, fora do reino das possibilidades. Assim como Mal Viver, do outro João, o Canijo, tinha as suas hipóteses de chegar à shortlist dos Óscares de 2024. Acredito, em todo o caso, que aquele Urso de Prata no Festival de Berlim ainda lhe sabe a pato.

O díptico de Canijo foi apreciado e celebrado, mas houve mais cinema português digno de nota em 2023. Por exemplo, os sonhos impossíveis de Great Yarmouth: Provisional Figures, assinado por Marco Martins, e o retrato familiar de A Minha Casinha, de António Sequeira, que trouxe uma alternativa fluida ao cinema português, tanto no conteúdo como na forma. É de lamentar que o público não tenha sentido mais urgência em ver os filmes em sala, já que Great Yarmouth: Provisional Figures não chegou aos 7.000 espetadores e A Minha Casinha até à data não conta sequer com 5.000 espetadores. Para referência, Pôr do Sol: O Mistério do Colar de São Cajó – o filme nacional que atraiu mais pessoas às salas – teve quase 120.000 espectadores.

O que também não descolou em 2023 foi o género de terror. Excluindo devidas exceções, por exemplo Beau Tem Medo e Fala Comigo, as estreias foram falíveis quer em qualidade como na marca que deixaram nos circuitos mais sedentos pelo cinema de terror. Alguns filmes foram mesmo irritantemente desdenhosos, como Gritos 6 ou mesmo Evil Dead Rise – O Despertar. Mais depressa bateria intensamente com a cabeça numa parede do que voltava a passar por aqueles chinfrins ocos. A dor seria menor.

Por falar em barulho, não foi possível passar ao lado do fenómeno de marketing cinematográfico do ano, que rapidamente a Internet designou por Barbenheimer. Sem entrar em detalhes, apraz-me sublinhar dois aspetos sobre este acontecimento: 1) ao ritmo de galope da indústria, nunca foi tão desafiante promover um filme, pelo que o céu é o limite no que diz respeito à criatividade; 2) o cinema, enquanto arte de massas, continua a ter apelo comercial e desempenha um papel crucial na sociedade. Em 2024, pensemos mais e melhor o cinema, com atenção às grandes estreias, mas sempre com o sentido crítico de querer ver para além do que nos vendem.

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