Regressar a “A Paixão de Joana D’Arc” (Carl T. Dreyer, 1928) é regressar a um local de desconforto que nos deixa mais firmes na afirmação do cinema enquanto arte. O filme de Carl Theodor Dreyer estreou há 96 anos e quase um século depois mantém a sua relevância, sobrevivendo ao teste do tempo sem que a sua moral envelheça com o passar dos anos.
Não é possível saber o que é representação cinematográfica sem saber quem foi Renee Maria Falconetti que, sem dizer uma única palavra, imortalizou o seu rosto na história da sétima arte e deu a Joana D’Arc, essa figura chave da história francesa, uma associação da qual já não pode ser desassociada. Joana D’Arc é Falconetti e Falconetti é Joana D’Arc.
Canonizada pela igreja Católica em 1920, personificada no grande ecrã em 1928, a Santa francesa morreu queimada na fogueira em 1431. A sua história parecia destinada a ser adaptada para o cinema, sendo então natural que quando Carl Theodor Dreyer, realizador dinamarquês, foi convidado para fazer um filme em frança sobre um qualquer tema da sua escolha a história da heroína da Guerra dos 100 anos tenha surgido como principal escolha. Crucial para a fama deste filme é, como já referi anteriormente, a escolha da atriz principal. Não deixa de ser surpreendente, difícil de acreditar até, que esta seja a única atuação de Falconetti numa longa-metragem. Com papel desta qualidade seria de esperar que a atriz francesa tivesse atuado mais vezes no grande ecrã, mas o seu “desaparecimento” para o cinema tem razão de ser – já lá iremos mais tarde. A história é curiosa, crucial para o filme que viria a ser retratado, pois a Joana D’ Arc de Dreyer foi descoberta por puro acaso. Quando o cineasta passeava pelas ruas de Paris e decidiu ir ver uma peça de teatro de baixo orçamento, uma comédia romântica onde, mesmo nem sendo a atriz principal, Dreyer se sentiu atraído pela expressão facial e beleza da quase amadora atriz. Depois de a ver em palco algumas vezes decidiu que queria convidá-la para uma audição e, como viria Falconetti a dizer posteriormente “sabendo pouco ou nada de representação para cinema” conseguiu o papel. Existem acasos na história que pouco parecem ter de aleatório, no meio da sua improbabilidade parecem dispostos a acontecer.
Logo desde as primeiras imagens, os primeiros minutos, existe um certo hipnotismo na maneira como a cinematografia é trabalhada. Os close-ups nas caras e as expressões faciais levam o espectador para uma viagem onde não só o tempo que o filme retrata, como a altura em que foi feito, se tornam pouco relevantes. Mesmo visto nos dias de hoje o filme poderia enganar os espectadores a acreditarem que foi feito na atualidade ou, caso tal fosse possível, há séculos atrás, quando os eventos retratados tomaram lugar. É um mérito incomum na história do cinema, Dreyer cria uma obra que, pela intemporalidade dos temas e maneira quase documental como está filmado, permite ao espectador focar-se no que está retratado dentro do ecrã sem que isto cresça desatualizado ou ultrapassado.
Os relatos da altura em que o filme foi lançado não são precisos, mas parece seguro afirmar que o filme, tal como a mulher que procura retratar, foram rejeitados. Houve mesmo quem chegasse a dizer que a película do filme devia ser queimada (quantas obras não se terão perdido assim…) por se tratar de uma representação herege de uma importante Santa da Igreja Católica. Tal chegou mesmo a acontecer, tendo o filme sido “perdido” num incêndio que levou ao seu desaparecimento no final da década de 20. Dreyer ainda tentou recuperar o filme original através da película queimada, mas também essa viria a desaparecer em mais um misterioso fogo que levou à sua nova destruição. Os acontecimentos não são precisos e as datas não são exatas, o que se sabe factualmente é que uma segunda versão viria a aparecer nos anos 50, sendo por várias vezes rejeitada e negada por Dreyer, também essa já difícil de encontrar na atualidade. No entanto, inversamente proporcional à maioria das obras transversais a qualquer forma de arte, “A Paixão de Joana D’Arc” não foi perdendo notoriedade e fãs, mas sim ganhando-os com o passar das décadas. Quando Dreyer morre em 1968 aquele que é provavelmente o seu maior filme continuava praticamente inacessível sendo apenas exibido em partes e em imagens que contribuíam para uma mística crescente em seu redor. Se a história não é já suficientemente interessante e digna, por si só de um filme sobre a descoberta do próprio filme, acontece que em 1981, um empregado das limpezas descobre, num hospício em Oslo, três bobines de fita de 35 milímetros que foram entregues à cinemateca norueguesa para investigação. Como que por milagre o que se encontrou na película perdida durante mais de 50 anos era a versão original de “A Paixão de Joana D’Arc”, tal como Carl Theodor Dreyer a tinha imaginado. Até hoje ninguém sabe como ou o porquê de a versão original ter acabado naquele hospício, sendo que o filme nunca chegou sequer a ter estreia comercial na Noruega. Mais uma vez, o mistério contribui para o enaltecimento da obra. É comum quando o filme é exibido em cinematecas, cinemas ou exposto em DVD as versões variarem em minutos e qualidade. Em muito se deve aos acontecimentos acima referidos.
Como indiquei anteriormente, a atriz do filme Renee Maria Falconetti nunca voltaria a atuar no cinema e, mesmo assim a sua representação neste filme quase perdido, mudo, supostamente herege e praticamente centenário permanece no cânone das grandes atuações da história da sétima arte. Isto deve-se maioritariamente ao facto de o filme não ter tido estreia comercial e a sua fama se ter dado apenas décadas mais tarde. Não sei se Falconetti teria tido uma carreira ao nível das grandes atrizes de todos os tempos mas, com apenas uma obra em seu nome e sem nunca dizer uma palavra, deixou pouco por dizer.
“A Paixão de Joana D’Arc” é um daqueles filmes que pertence aos arquivos de um museu, que depois de quase ter sido perdido, merece ser preservado a todo o custo. É uma obra sobre o sofrimento em confinamento, despido de tudo o que faz de nós humanos dignos. A maneira como vejo a mensagem de Dreyer seria algo como uma representação cinematográfica do total abandono do ser para se entregar à vontade de uma crença em Deus (seja lá qual for a crença, seja lá qual for o Deus). Atualmente, num período em que a necessidade de certezas é muita este filme vem lembrar a importância da crença, o poder do invisível na fundação da sociedade ocidental que tanto procuramos proteger.