No passado dia 25, dois filmes portugueses foram premiados em Cannes. Grand Tour de Miguel Gomes venceu o prémio de Melhor Realizador na competição de longas-metragens, e Bad for a Moment de Daniel Soares venceu a Menção Honrosa na competição de curtas-metragens. Bad for a Moment segue a história de um arquiteto que está a trabalhar num projeto de construção de um condomínio de luxo que contribuirá para o despejo de dezenas de pessoas num bairro social. Após uma sessão de team-building numa sucata que consiste em destruir carros para libertar raiva acumulada, ele entra numa crise existencial sobre a natureza do seu trabalho. É uma curta com um humor ácido e que traz uma visão bastante particular sobre a atualidade da crise habitacional. O Cinema em Portugal teve a oportunidade de assistir a este filme já premiado e conversar com o realizador sobre esta curta que já está a ter o seu impacto.
Esta entrevista foi conduzida por Jasmim Bettencourt.
Bad for a Moment reflete sobre a crise da habitação atual, tal como The Architect de Kerren Lumer-Klabbers, de onde partiu a ideia para este filme?
Daniel Soares: A ideia começou com uma cena em que há destruição de carros. Eu cresci na Alemanha, sou filho de imigrantes, e o meu pai era mecânico e aos fins-de-semana ele levava-me a umas sucatas onde ele ia buscar peças de carro. Isso ficou um bocado no meu subconsciente. Uma vez eu soube destes lugares onde o pessoal vai e destrói coisas por prazer. Ao mesmo tempo, estavam a acontecer protestos em França e viam-se carros a serem destruídos. Então, fiquei com isso na cabeça, esse paralelo de toda a gente ter uma certa raiva dentro delas. Para alguém que tem dinheiro é tranquilo porque pode-se alugar um espaço e fazer isso e para quem não tem é um crime. A ideia começou aí. Depois é que fui desenvolvendo o contexto do ateliê de arquitetura, que também está associado à destruição e construção. Por outro lado, eu não estava interessado em fazer um filme do ponto de vista da vítima. Inicialmente, a história era contada do ponto de vista das crianças que aparecem no filme. Mas isso pareceu-me demasiado fácil e demasiado dramático, e eu não estou muito interessado nisso. Para mim, isso foi a maior dificuldade ao longo do processo da escrita: como tornar o personagem do arquiteto credível e como não odiá-lo e como não o tornar numa piada unidimensional. Para além disso, interessava-me focar naquilo que nós fazemos no nosso dia a dia, esta coisa de que nos podemos enganar a nós próprios, contarmos uma certa história a nós próprios no nosso dia a dia para que possamos fazer esta coisa que é o que a “máquina” foi feita para fazer. Esta coisa de “se não for eu, vai ser outra pessoa”, “tenho que pôr comida na mesa”, estas coisas que criamos para justificar aquilo que fazemos – a ponte entre a ética que temos e como justificamos o que fazemos. É algo transversal, não só a arquitetos, mas também advogados, pessoas que trabalham em publicidade, etc. O filme acabou por virar para isso.
O filme retrata dinâmicas de poder entre classes sociais. Um grande desafio do filme é como é que o humor pode ser usado para analisar essa situação. Como é que pensas no humor no contexto deste filme?
Daniel Soares: Se calhar é uma coisa de personalidade, da forma como vejo a vida, porque as coisas são muito interligadas – o humor e a tragédia. Existe uma frase de um filósofo francês, Jean de la Bruyere, “a vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”. Para mim, isso reflete-se nos meus filmes. Não é um humor elaborado, eu tento tirar o humor presente na vida real, ao observar. Não é tanto ao criar uma história, é mais a partir do observar. E acho que o mundo corporativo é isso. Essas coisas dos team-buildings, essa coisa de ir a um lugar, fazer alguma coisa para aumentar o espírito de equipa, para continuarmos a fazer coisas fora do ambiente de trabalho. Eu trabalhei numa agência de publicidade e havia uma pessoa que trazia green juices a todas as quintas-feiras. E o pessoal fica tipo “epá, isto é fixe, trabalho num lugar fixe” e são coisas que são criadas para continuarmos ali oito/dez horas diárias atrás de um computador a fazer coisas que não queremos saber para nada. A maior parte da nossa vida passamos a fazer isso. É triste, mas tem humor nesse absurdo.
Em relação ao personagem do arquiteto, já tinhas uma ideia para ele ou foste descobrindo-o?
Daniel Soares: No início, eu tinha uma relação com este personagem em que faltava uma conexão mais intima. Eu tenho este problema, quando começo a escrever um guião, que parece que, quando me aproximo da rodagem, sinto que estou a fazer piada deste personagem e não dá para filmar dessa forma. Então tive que encontrar coisas na personagem deste arquiteto que vêm da minha própria vida. Trabalhei vários anos em publicidade e, muitas vezes, faz-se campanhas e não se questiona aquilo que se faz. Questiona-se de um ponto de vista criativo, torna-se numa forma de auto-expressão através da publicidade. Mas, está-se a fazer coisas que não melhoram o mundo, antes pelo contrário. Com o passar de anos eu senti-me cada vez mais desenquadrado nesse mundo e saí. O pessoal que vai ficando faz essa coisa de criar narrativas para si mesmo. O que quero dizer, é que posso começar numa ideia conceptual mas, a certo ponto, tenho que fazer essa conexão comigo mesmo, porque, se não, não sei do que estou a falar. Eu não sou arquiteto, e fizemos muito trabalho de pesquisa. Mas, no final, o que importa, é eu saber o que ele sente. E para isso, não é uma coisa de pesquisa, é algo que possa sentir da minha vida ou amigos à minha volta. E dessa forma, eu consigo criar pontos vulneráveis no personagem e, a partir daí, consigo conectar-me com essa pessoa.
Existe, de uma certa forma, uma identificação com o personagem.
Daniel Soares: Nunca fiz nada disto, mas no mundo do trabalho, existe, muitas vezes, esta coisa de olhares para aquilo e pensares “o que estou a fazer com a minha vida”. É aquela música dos Talking Heads: “How did I get here?”. É essa ideia. “How did I get here and how do I get out of here?”.