Diz o adágio que devemos conhecer o passado para entender o presente. Esta ordem de razão não se aplica somente às pessoas, mas também às nações. Melhor, aplica-se às nações através da história coletiva do seu povo. Aquela que se leciona na escola, aquela que a sociedade civil varre para debaixo do tapete e aquela em que o avô pensa depois da consoada, num ato de introspeção dormente, sem a verbalizar.
E porque a história inteira de uma nação não se conta de um dia para o outro, o cinema contemporâneo, encruzilhando-se entre a ficção e a realidade, tem-se proposto a contá-la pouco a pouco. É para quem a quiser ver, é certo – a fraca bilheteira dos cinemas portugueses e, em particular, do cinema nacional, tem sido comentada noutros fóruns. No entanto, o papel determinante que tem na revisão dos factos e na expansão de perspetivas, esse, não se pode negar. Recorde-se, a propósito, o trabalho da realizadora Marta Pessoa, cuja obra tem-se debruçado sobretudo em dar a ver aquilo de que não se fala. Um fabuloso exemplo é o seu mais recente “Rosinha e Outros Bichos do Mato” (2024), que elucida sobre a temática do colonialismo com a franqueza que não se encontra nos manuais.
Com a mesma curiosidade indelével, Catarina Mourão, de novo no papel de cineasta, apresenta-nos “Astrakan 79” (2024), a mais recente adição a este cânone de narrativas que nos obrigam a reavaliar o passado. Do particular para o coletivo, como é seu apanágio, Mourão documenta um episódio medular na vida de Martim Santa Rita, que aos 15 anos era um fiel partidário dos ideais comunistas. Hoje, com 58 anos e outras maneiras de pensar o mundo, conta pela primeira vez esta história ao seu filho. Até então, a história era um tabu de família.
Entrevista
Bernardo Freire: Com “Astrakan 79”, a Catarina insiste em vasculhar os sótãos alheios e, neste caso, o que encontra são fantasmas soviéticos. Como foi o processo de pesquisa e preparação para documentar este episódio da vida de Martim?
Catarina Mourão: Eu já conhecia vagamente a história do Martim, mas sempre de forma sussurrada e indirecta. Depois do meu filme A Toca do Lobo, interessou-me voltar aos segredos de família e perceber até que ponto são estruturantes na identidade de cada um. Interessou-me perceber se no contexto da revolução, um momento em que a Liberdade era um dos valores mais aclamados e celebrados, não haveria zonas de tabu. E na história do Martim, que se desenrolou no período do PREC, confirmei isso mesmo.
Bernardo Freire: O caso da família Santa Rita, isto é, o silêncio que se perpetuou em relação à falência de uma crença enraizada, é sintomático de que nós, enquanto país, ainda não estamos preparados para debater alguns aspetos de que menos nos orgulhamos?
Catarina Mourão: Não se trata de aspectos que nos orgulhamos ou não, trata-se sobretudo de saber falar sobre o conflito, expectativas goradas neste caso. É claro que em Portugal, talvez por termos vivido 48 anos de ditadura, há ainda muita dificuldade em falar sobre a nossa história recente, o passado colonial, a vida dos PIDES DGS, e mesmo sobre o período do PREC. Mas acho que quando falamos também de emoções e de traumas emocionais ligados a um período histórico, o diálogo ainda se torna mais difícil. Não temos prática de falar sobre emoções.
Bernardo Freire: Como é que encara a evolução e abordagens das questões sociais e das representações históricas no cinema português?
Catarina Mourão: Eu acho que é muito emocionante ver a forma como o cinema português se apropria destas questões e parte delas para criar universos e linguagens muito próprias. O cinema português, graças em parte a um apoio ao cinema de autor independente, é um cinema muito rico e diverso. E claro que sendo o cinema, uma arma de pensamento e sentimento, os conflitos sociais e os acontecimentos do passado são uma fonte de inspiração muito grande. Estamos a falar de um cinema que questiona e que nessa medida procura perceber o que somos no mundo, é um cinema que encerra em si sempre uma busca identitária, a diferentes níveis.
Bernardo Freire: Como espera que os espetadores saiam da sala de cinema depois de assistir ao “Astrakan 79”?
Catarina Mourão: O filme Astrakan 79 vai ser precedido de uma curta-metragem que realizei há mais anos e que nunca passou no circuito comercial, “O mar enrola na areia”. Os filmes dialogam entre si e ambos exploram questões ligadas à construção da memória e à transmissão de memórias e segredos. Formalmente, fazem-no de forma muito diferente. Espero que a sessão deixe os espectadores a pensar nestas questões, mas que simultaneamente se deixem levar pelo lado formal e plástico de ambos os filmes.
Bernardo Freire: Para lá da dimensão sociopolítica, este é um trabalho dado aos afetos. Aliás, é a conversa entre pai e filho, a sequência que, de certa maneira, justifica o filme do ponto de vista emocional. Acredita que os seus filmes têm algo de terapêutico?
Catarina Mourão: Não sei responder a isso. Só os espectadores, e aqueles que participam nos filmes é que podem responder a isso. Não acho que os meus filmes sejam mais terapêuticos de que outros objectos artísticos. É muito pessoal e insondável aquilo que nos pode salvar. Nem acho que faça os meus filmes para me salvar a mim. Claramente respondem a inquiteções minhas, mas nem sempre são processos terapêuticos.
Vê aqui o trailer de Astrakan 79, a partir de 11 de Julho nos cinemas em Portugal: