O Cinema em Portugal foi falar um pouco com o realizador Pedro Senna Nunes sobre o Cinema Português e o seu estado, numa pequena antevisão sobre a masterclasse de Cinema que o realizador vai dar neste próximo dia 23 de Março no Auditório São Mateus em Elvas, como parte da programação da 1ª edição da RONCA – Mostra de Cinema de Elvas, numa de duas masterclasses que fazem parte deste certame cinematográfico.
Quais os principais desafios que o Cinema Português deverá ter de enfrentar na próxima década?
Pedro Senna Nunes: Sou optimista por natureza, mas esta pergunta leva-me a ter de ser realista. Prevejo que os próximos anos sejam transversalmente exigentes. Nesse sentido, o cinema português terá de saber explorar as boas práticas implementadas nos últimos anos, e uma das chaves do seu sucesso é ser um cinema tendencialmente de autor, disposto a uma (re)invenção do mundo das ideias. O cinema nacional está alicerçado numa tendência naturalmente europeia, mas não pode perder de vista a dimensão comercial.
O país terá de saber aproveitar a atual renovação técnica das salas de cinema e auditórios, fortalecendo o investimento na divulgação. Terá de repensar a cadeia de valor das várias fases de produção e exibição, diversificando as tipologias da indústria. A próxima década contém um desafio extraordinário face aos novos avanços tecnológicos e equipamentos de registo, pós-produção e exibição. As múltiplas vias de acesso e visionamento estarão cada vez mais enraizadas, mas acredito que novas formas de consumo de conteúdos possam surgir.
Portugal precisa de um Ministério da Cultura robusto e determinado a explorar mais e melhor os filmes e conteúdos televisivos nacionais e manter uma presença competitiva internacional. Manter viva a potencialidade das co-produções e no extremo explorar mais incentivos para os jovens, atendendo às equipas emergentes que se destacam quando finalizam os seus estudos.
A produção do Cinema Português tem aumentado mas segue o balanço do mercado mundial que tem tido ciclos e contraciclos. São muitos os filmes portugueses reconhecidos e premiados internacionalmente que não são vistos pelo público português. É preciso um esforço contínuo para garantir a presença do nosso cinema nos ecrãs das salas de cinema, nas salas de aula ou nos auditórios das universidades. Nos próximos anos precisamos de investir em estratégias de promoção do nosso cinema, apoiar os que têm menos recursos, evitar desequilíbrios identificados. Estabelecer parcerias com distribuidores internacionais. Reinventar as estratégias de co-produção. Incentivo ao movimento cineclubista.
Dar espaço a novos festivais e a festivais de nicho, é o ponto que mais destaco, e superar estes desafios exigirá um esforço conjunto: empresas, academia, governo, indústria, instituições, criadores, técnicos e diversos públicos. Enquanto tivermos homens e mulheres a utilizarem câmaras de filmar, o cinema continuará a existir.
Como vê o impacto do streaming para a produção e divulgação de cinema português?
Pedro Senna Nunes: É na sala de cinema que o cinema acontece por excelência. O streaming oferece uma oportunidade a todos os espectadores que perderam, ou nunca tiveram, hábitos de sala. O streaming amplia e diversifica o público, tanto a nível nacional quanto internacional. É um facilitador na divulgação de produções independentes e alternativas, criando novas formas de monetização e visibilidade dos filmes. O streaming disponibiliza uma vitrine permanente de filmes, permitindo a sua disponibilidade para visualização a qualquer momento, em qualquer lugar. Isso significa que o público que vive distante dos grandes centros urbanos poderá encontrar neste modelo o único acesso a certos filmes.
É necessário continuar a inventar novos modelos de distribuição e exibição. As novas tecnologias irão seguramente continuar a contribuir para a dinâmica das plataformas de streaming, permitindo que o cinema português chegue a mais espectadores de todo o mundo, sem as barreiras tradicionais da distribuição e dos circuitos de cinema.
Apesar do exponencial crescimento das plataformas, o retorno financeiro por visualização é cada vez menor face aos resultados de bilheteria de exibição tradicional. Também a distribuição do cinema nos canais televisivos passou a ser menos rentável. O cinema nacional precisa de encontrar um equilíbrio entre a exposição global e a sustentabilidade financeira. Apesar dos desafios, e das conhecidas contradições, o impacto do streaming no cinema português pode ser, em geral, considerado positivo.
Abrem-se novas portas para a produção nacional, outras formas de contar histórias e de experimentar, assim como uma diversidade de vozes e perspectivas do cinema. Ao mesmo tempo, o streaming desafia a indústria a adaptar-se e a inovar perante um mercado inevitavelmente mais globalizado e digital. É um novo capítulo na história do cinema, que requer criatividade, adaptabilidade e uma visão centrada no futuro.
De que formas se pode aproximar mais o público português do Cinema Português?
Pedro Senna Nunes: Aproximar o público do seu próprio cinema é um exercício complexo porque estão muitos factores em jogo. A arte e a cultura em geral, e o cinema em particular, têm de continuar a ser estimulados, não existem hábitos de consumo quando as pessoas não conhecem sequer o que podem consumir. Temos pouco acesso e poucos estímulos. Um filme português estreia, normalmente sem uma máquina de promoção, com uma crítica sempre muito severa, e se na primeira semana não tiver espectadores, sai de cena.
Os jovens e as crianças são os futuros espectadores e fazedores da cine-matéria. Porém, precisam de ter gosto pela sua língua, têm de conhecer a sua História, e os seus artistas. Temos um país pequeno, poder-se-ia pensar que até seria fácil, mas a hegemonia da cinematografia americana, tão bem implementada, e a pouca vocação das produções nacionais para histórias mais adequadas aos interesses do público em geral, não aproximam o público do seu cinema.
Nisto, o PNC – Plano Nacional de Cinema pode ser uma ferramenta essencial, mas precisa de robustez financeira para ser ampliado. Insisto, o PNC, bem como o PNL (Plano Nacional de Leitura) ou o PNA (Plano Nacional das Artes) trarão resultados a uma geração ao fim de dez/quinze anos. E estes investimentos têm de estar articulados com os modelos de produção e o storytelling adequado ao público com quem queremos dialogar. De novo as plataformas de acesso livre, o streaming, a televisão pública e privada, os festivais de cinema, a criação de programas educativos, além da realização de sessões especiais, debates e conversas com cineastas numa integração orgânica com a comunidade, podem contribuir para uma aproximação do público ao seu cinema.
É preciso revisitar os filmes do passado os mais e os menos conhecidos, é preciso colocá-los noutro tempo, em diálogo com diferentes gerações. A experiência de mostras de cinema regional, como a RONCA, incentiva a participação e o envolvimento do público.
Investir na promoção da diversidade e singularidade do cinema português pode despertar o orgulho nacional e o interesse do público. Destacar as características únicas da produção local, como a paisagem, a cultura, a história e a dimensão social, pode criar uma conexão mais profunda com o público. Essas iniciativas não apenas aumentam o acesso aos filmes, mas também fortalecem a identidade cultural e contribuem para a vitalidade da indústria cinematográfica nacional.
E de que forma se pode desenvolver e apostar mais na educação cinematográfica em Portugal?
Pedro Senna Nunes: Na minha perspectiva, e talvez seja suspeito, as escolas que ensinam cinema em Portugal estão de saúde. Prova disso, são os resultados e as presenças dos filmes dos alunos nas mostras e festivais nacionais e internacionais. Contudo, as escolas podem desenvolver melhor a relação dos futuros profissionais com o mercado de trabalho. Porém, a pergunta dirige-se, se bem percebi, a algo mais transversal, e nesse sentido, proponho uma mais afinada colaboração com instituições culturais na promoção da literacia cinematográfica e audiovisual. Pensando em novos públicos, os festivais podem ter um peso neste desenvolvimento, mas precisam de ser descentralizados.
Neste sentido, proponho o reforço do PNC através da flexibilização pedagógica que facilite o recurso à história e análise do cinema como ferramenta de ensino, bem como a inclusão de disciplinas ou módulos dedicados ao estudo do cinema nas escolas primárias e secundárias, e mesmo no ensino superior e nas universidades sénior.
Lembro-me do que faço há quase vinte cinco anos, a convite dos Encontros de Cinema de Viana, em que anualmente produzimos seis curtas-metragens, em que crianças e jovens contam as suas histórias, envolvendo todas as disciplinas curriculares. Num mundo claramente digital, proponho a intensificação de cursos e workshops de cinema para jovens, um pouco como já acontece por todo o país. Assim como a promoção de concursos e iniciativas que estimulem a criação de curtas-metragens. Estas propostas oferecem oportunidades práticas de aprendizagem. Além disso, importa oferecer formação para professores por forma a incorporarem o cinema no ensino de outras disciplinas, como história, literatura, artes e ciências sociais, capacitando o público do futuro para o impacto cultural, social e político.
Qual a importância e impacto que iniciativas como a RONCA representam para o panorama nacional do Cinema?
Pedro Senna Nunes: Iniciativas como a Mostra RONCA desempenham um papel crucial ao promover o talento emergente, incentivando a experimentação e a inovação no cinema português, proporcionando um espaço importante para a exibição de filmes que marcaram a nossa História com filmes independentes e alternativos. Ao incluir uma variedade de longas-metragens e curtas-metragens de diferentes tempos, géneros e temáticas, a RONCA promove a diversidade de vozes e perspectivas no cinema português, permitindo que o público de diferentes gerações tenha acesso a uma multiplicidade de experiências.
Ao realizar o festival na cidade de Elvas, fora dos centros tradicionais de produção e exibição, a RONCA contribui ainda para a quebra de barreiras geográficas e a descentralização da cultura cinematográfica. Isso não só valoriza as produções regionais e locais, como estimula o surgimento de novos talentos e histórias autênticas, de diferentes partes do país. Ao descentralizar o cinema, fortalecem-se identidades culturais regionais, promove-se o intercâmbio cultural entre diferentes comunidades e cria-se uma rede mais ampla e diversificada de produção cinematográfica em Portugal.
A RONCA é uma iniciativa louvável de descentralização do cinema português, pensada e produzida por jovens estudantes de cinema, em que tanto acredito. Precisará do seu tempo de sedimentação, mas para já atraiu a atenção de muitos dos residentes locais. São espaços como este de revisitação histórica versus a apresentação de talentos emergentes, sem perder de vista a formação, que farão toda a diferença no presente.
Neste sentido, a RONCA não só conseguiu conquistar o apoio do poder local, que percebeu que a mostra promoverá o turismo cultural na região, contribuirá para o desenvolvimento económico e social criando oportunidades para o comércio local, a gastronomia, o turismo e o desenvolvimento de infraestruturas culturais. Dessa forma, a RONCA não é apenas uma mostra de cinema, mas também um agente de mudança positiva que impulsionará o desenvolvimento cultural e económico da região onde se realiza.