Autenticidade tendo vindo a ser um dos conceitos mais prevalentes nas conversas sobre expressão artística. De um certo ponto de vista, a arte, no seu seio, é tanto mais valiosa quanto mais cunho pessoal o artista lhe aferir. Isto deve-se, em parte, ao facto de permitir ao público-alvo facilmente reconhecer as características que a tornam unicamente humana e até mesmo identificar a pessoa que criou uma determinada obra de arte. Por outro lado, devido à enorme oferta existente nos dias atuais, torna-se tão fácil criar algo derivado e influenciado por outros trabalhos, que é louvável quando alguém consegue fazer-se diferenciar dos demais. Contudo, apesar de ser importante tentarmos personalizar ao máximo o nosso trabalho, o facto de ele partir da experiência humana leva a que, pelo menos em termos temáticos, ele desperte empatia e até mesmo revisão por parte de quem o aprecia. Por outras palavras, quanto mais pessoal uma obra de arte é, mais facilmente outras pessoas se identificam com as problemáticas, experiências, temas e situações representadas.
Desconhecidos, de Andrew Haigh, acompanha Adam (Andrew Scott) e Harry (Paul Mescal), dois vizinhos que se envolvem num romance intenso, que leva o protagonista numa viagem complicada pelo seu passado. Adam é baseado na história pessoal do próprio realizador, sendo que vários dos temas abordados no filme advêm da sua experiência. Contudo, a abertura a que o cineasta se propôs, tocando em pontos tão viscerais e puramente humanos, permitiu a Haigh criar uma obra de arte com a qual o espectador se consegue facilmente identificar. Creio que o título original da longa-metragem de Andrew Haigh, All of Us Strangers, procura reforçar esta ideia. Haigh cria distanciamento com o outro através da palavra “Desconhecidos”, mas aproxima-se com o uso de “Todos Nós”, aludindo ao facto de que toda a gente encontrará algo em comum com a história de Adam, espelhando a forma como o próprio protagonista encontra território em comum com Harry, um desconhecido.
Introdução de Temáticas
O filme começa com uma montagem de Adam no seu apartamento a realizar tarefas mundanas do dia-a-dia. Os planos nunca transmitem solidão, pelo contrário. Haigh usa frequentemente o contraste entre o céu azul e a iluminação de tons quentes do interior do apartamento para criar um ambiente seguro, acolhedor e caloroso para Adam. Caminhando só e calmamente para a rua, o personagem observa o edifício – uma construção recente, com uma fachada inteiramente em vidro. Haigh utiliza um plano geral do edifício para elucidar o espectador acerca da história que está prestes a desenvolver-se. Quando Adam estuda o exterior do seu prédio, apenas uma mão cheia de apartamentos está iluminada, havendo um que se distingue pela sua iluminação e pela presença de uma silhueta que observa o Adam de volta. Em retrospetiva, conseguimos supor que o apartamento em questão pertence ao Harry. Há três detalhes importantes neste plano geral: o número de apartamentos iluminados, o tom de cor da luz, e a presença do Harry na janela.
O facto de haver um número reduzido de apartamentos com o interior iluminado informa acerca do estilo de vida solitário do protagonista. Adam, para além de viver sozinho, vive num prédio pouco ocupado, com estímulos externos limitados e baixa probabilidade de se cruzar com vizinhos no seu quotidiano. Este detalhe introduz subtilmente uma das facetas do protagonista que, mais tarde, o espectador descobrirá tratar-se de um dos traços que o define. Desconhecidos é uma história sobre autoanálise, nostalgia e trauma de infância; temas reflexivos que se materializam no filme quando o Adam observa o prédio – sendo todo ele em vidro, o edifício reflete a imagem do personagem, pelo que ele está, tecnicamente, a observar-se a si mesmo.
A iluminação visível nos apartamentos habitados é predominantemente quente, semelhante à presente em casa do Adam. Tal como mencionado anteriormente, esta escolha artística conota um ambiente acolhedor aos espaços. Por outro lado, um dos apartamentos – do Harry – emite uma luz azul intensa que, por sua vez, conota um ambiente desconfortável, frio. Além disto, de acordo com as convenções ocidentais, azul é a cor da melancolia e da tristeza, pelo que o seu uso informa o espectador acerca do possível estado psicológico do personagem.
O azul delimita a silhueta do Harry enquanto ele observa o Adam na rua. A sua escolha de permanecer no interior do prédio e ignorar o alarme de incêndio indica uma certa apatia face ao perigo. O Harry é um personagem perturbado, com uma saúde mental debilitada e possível ideação suicida – aspetos que se tornam evidentes na primeira conversa entre os dois personagens.
Harry, embriagado, procura o Adam no seu apartamento e aborda vários dos temas previamente mencionados: o silêncio do prédio, o exterior envidraçado, ideação suicida, o desconforto que sente no seu apartamento, a solidão e, ultimamente, a necessidade de uma companhia. Daqui forma-se uma relação entre eles, a qual se inicia com base em atração física, mas eventualmente ganha substância através da partilha de trauma de infância, questões existenciais e entreajuda para lidar com as consequências das experiências de vida de cada um.
Trauma de Infância
Claire Foy e Jamie Bell interpretam os papéis de Mãe e Pai do Adam (escrevo em maiúsculas, pois é desta forma que os atores são creditados, sem um nome próprio definido) os quais morreram num acidente de carro quando ele tinha apenas 12 anos. Grande parte do filme é dedicada ao reencontro da família – Adam visita a sua casa de infância, onde revive memórias de infância, conversa com aparições da Mãe e do Pai e reflete na forma como a sua relação com os pais esculpiu a pessoa em que ele se tornou.
Por ter perdido os pais precocemente, a imagem que Adam tem deles estagnou nesse momento, pelo que quando os recorda eles assumem o aspeto físico que tinham quando o protagonista tinha 12 anos. É algo tão óbvio que quase não precisa de ser explicado, contudo, a forma como Haigh o materializa no filme é merecedora de análise.
Apesar de Claire Foy e Jamie Bell serem mais novos do que Andrew Scott, muito raramente é utilizado um ator mais novo nas cenas em que o Adam interage com os seus pais. Isto eleva as cenas para além da recordação, aproximando-as da ideia de reencontro entre o Adam atual e os seus pais quando os perdeu. Este aspeto atribui um elemento sobrenatural ao filme, o qual nunca é tema de conversa nem se traduz num obstáculo da narrativa. O filme deixa claro que o Adam não se encontra num estado de negação perante a perda dos pais – os personagens abordam frequentemente a morte prematura. O personagem também não está “simplesmente” a alucinar os pais, pois eles partilham várias histórias, sentimentos e dinâmicas com o Adam, que ele desconhecia até os fantasmas dos pais as mencionarem. A aparição dos pais do Adam no mundo atual, apesar de ser algo novo para o protagonista, é imediatamente aceite como parte do universo cinematográfico. A natureza sobrenatural das aparições é realçada apenas por manipulações momentâneas do som e da imagem para lhes conferir uma presença etérea e pela sua recorrente incapacidade ou recusa de comida ou bebida. Contudo, os personagens não questionam o motivo, a causa, ou o que possibilita o fenómeno que está a decorrer. Os fantasmas da Mãe e do Pai são parte da jornada do protagonista, da mesma forma que a sua infância e o trauma que dela advém fazem parte do seu quotidiano.
De todas as cenas entre o Adam e os seus pais, aquela em que ele conversa apenas com o Pai é umas das cenas mais emocionais e que tem recebido maior cobertura pela crítica. Não é novidade que, especialmente na geração do Adam, homens gays tendem a ter uma relação complicada com o pai no que toca à partilha e aceitação da sua sexualidade. No filme, esta dinâmica é evidente pela forma distinta como o Adam aborda o tema com cada um dos pais. Enquanto com a Mãe ele o faz de forma direta, com o Pai fá-lo de forma mais cautelosa e apreensiva. Para espanto do protagonista e do espectador, as reações de ambos contrariam um pouco o estereótipo anteriormente mencionado. A Mãe, surpreendida pela partilha do filho, não adota uma atitude de rejeição ou homofobia, mas demonstra-se intrigada pelo estilo de vida (que a comunidade heteronormativa associa ao) homossexual e questiona o quão certo o Adam está de que quer comprometer-se a essa realidade; por outro lado, o Pai admite que sempre soube que o Adam era “um pouco Tutti Frutti” – uma fala que Jamie Bell entrega de forma leve e com tom jocoso, quebrando imediatamente qualquer tensão que o Adam, e a própria audiência, possam levar para a conversa. Daqui desenvolve-se um diálogo sobre a disponibilidade emocional em relações familiares, bem como sobre a reciprocidade e o mutualismo necessários para este apoio. O arrependimento demonstrado pelo Pai face ao seu desdém pela clara dificuldade do Adam em navegar o ambiente escolar (em grande parte devido à sua sexualidade); e o alívio que o Adam sente quando finalmente reconhece as feridas emocionais que esta forma de negligência lhe causou, atribuem à cena uma intimidade com a qual a audiência poderá, de forma mais, ou menos indireta, identificar-se.
Padrões Desadaptativos de coping
Durante a conversa entre o Adam e o Pai, é-nos explicado que o Adam frequentemente se isolava no quarto depois de um dia difícil na escola. Por não sentir abertura por parte dos pais para partilhar as suas aflições, o seu impulso era não só não partilhar, mas tentar esconder aquilo que sentia. Para tal ele não mentia, simplesmente evitava o contacto com outras pessoas. De certo modo, Desconhecidos consiste no Adam a repetir esta disfunção enquanto adulto.
Na montagem inicial do filme, o Adam tenta escrever um guião um tanto autobiográfico. Assim que ele começa a remexer no seu passado, sentimentos, emoções e pensamentos suprimidos ressurgem. Como consequência, ele começa a fechar-se na sua casa de infância com fantasmas que representam a dor, o luto e as angústias que ficaram por resolver. À medida que o protagonista discute com os pais estes temas, a sua relação com eles ganha proximidade e torna-se mais saudável – tão saudável quanto uma relação com fantasmas de pessoas há muito perdidas possa ser. Adam agarra-se de tal forma aos fantasmas dos pais, que começa a prejudicar a sua vida social e profissional para viver numa fantasia. Por outras palavras, para lidar com o vazio e a solidão que o protagonista explica ter vindo a sentir desde que perdeu os pais, ele isola-se do resto da sociedade para viver “aquilo que poderia ter sido”. A potencial relação que ele poderia ter tido com os pais.
Eventualmente, tratando-se de verdadeiras aparições dos pais do Adam e não de alucinações, a Mãe e o Pai explicam que a dinâmica que os três estão a alimentar está a tornar-se prejudicial para o protagonista, impedindo-o de se dedicar verdadeiramente à sua vida “real”. Nomeadamente, à sua relação com o Harry. Ele precisa de “sair do quarto”, ou pelo menos deixar outra pessoa entrar – o que não acontecerá enquanto ele tiver a companhia dos falecidos pais. Fazem-se as despedidas e o Adam, agridoce, procura o Harry para lhe contar o que aconteceu e, supomos, para cimentar a relação entre eles. É aqui que o verdadeiro murro no estômago de Desconhecidos chega.
Quando o Adam chega ao apartamento do Harry, este encontra-se desarrumado, com um odor desagradável, garrafas vazias de bebidas alcoólicas espalhadas pelo espaço, droga no balcão e a televisão ligada. Esta transmite apenas estática que emite a mesma luz azul que vimos no primeiro plano geral do exterior do edifício. Adam caminha até ao quarto de Harry, onde o encontra morto na cama, usando a mesma roupa que vestia na primeira noite que se conheceram. Nessa noite, Harry, embriagado, bate à porta de Adam e quase chega ao ponto de implorar para entrar. Compreensivelmente, Adam recusa – afinal de contas, Harry é apenas um desconhecido com sinais visíveis de dependência de substâncias. Contudo, creio que o filme pretende dar a entender que o padrão comportamental de isolamento que o Adam adota em momentos de atribulação emocional não só o privou de ter uma relação com o Harry, como também o impediu de ler os pedidos de ajuda que ele transpareceu. Apesar do Harry ser um desconhecido, a sua solidão não o é. De facto, essa solidão é parte do terreno comum entre o Adam e o fantasma de Harry. Com isto não pretendo implicar que o Adam é responsável pela morte do Harry, mas sim realçar uma possível saliência de possíveis consequências de nos deixarmos levar por mecanismos automáticos desadaptativos.
Mecanismos esses que, no caso do Adam, voltam a repetir-se com Harry. O próprio filme enquadra a despedida dos pais como um passo em frente na reentrada do Adam no mundo “real”. Um abandono de muletas emocionais prejudiciais à sua vida pessoal com o intuito de poder redirecionar o seu foco para relações sociais que lhe irão acrescentar algo, em vez de o fazerem ruminar nos erros do passado. Contudo, seguindo a metáfora anterior, o Adam apenas troca a moleta de mão. No último plano do filme, o casal dorme aconchegado no quarto de Adam. Este volta a fechar-se no quarto – acompanhado apenas pelo fantasma do Harry e pela potencial relação que os dois poderiam ter tido se o Adam tivesse dado abertura para tal na noite em que eles se conheceram.
Desconhecidos é um espelho. A autorreflexão e a identificação são conceitos-chave, quer para os personagens, quer para a audiência. O filme não demonstra interesse em explicar os seus elementos sobrenaturais, algo que poderá ser entendido como desleixado, mas creio ser uma das características que permite à obra salientar-se das semelhantes. Os fantasmas existem no limiar entre sobrenatural e processos psicológicos, sem nunca tenderem definitivamente para um dos extremos. Assim, apesar de Desconhecidos ser leve em worldbuilding, o filme é completo na sua exploração do mundo interior de Adam. O foco nos acontecimentos e não no seu motivo torna a longa-metragem de Andrew Haigh numa boa analogia para um dos traços principais do protagonista, permitindo um maior estudo e consequente entendimento deste.