Com os serviços de streaming a apostar cada vez mais em conteúdo original, a fasquia para o tipo de filme “merecedor” de ir para as salas de cinema tem vindo a elevar-se. Esta segregação entre cinema e streaming não tem uma relação diretamente proporcional com a segregação entre blockbusters e filmes comummente designados de “não-comerciais”; o espetáculo do filme, o world building, a cinematografia, a campanha publicitária, o elenco, entre outros aspetos, são aquilo que tem vindo a determinar a forma como as obras cinematográficas chegam aos espectadores.
Dito isto, Vidas Passadas, de Celine Song, é uma obra que o grande ecrã teve o privilégio de poder exibir. Acabado de chegar a Portugal, o filme já agregou três BAFTAs, um Urso de Ouro, dezenas de prémios americanos e centenas de prémios internacionais, para além de estar nomeado para os Óscares de Melhor Filme do Ano e Melhor Guião Original. A entrada de Song no mundo das longas-metragens foi feita com dois pés direitos, presenteando-nos com representações, emocionais e emocionantes em igual medida, de Greta Lee (Nora), Teo Yoo (Hae Sung) e John Magaro (Arthur). O filme acompanha Nora e Hae Sung, dois amigos de infância profundamente conectados que se separam quando a família de Nora emigra da Coreia do Sul. Vinte anos mais tarde, eles reúnem-se por uma semana fatídica, durante a qual confrontam noções de amor e destino.
A entidade antagonista presente em Vidas Passadas é a própria vida, o destino – algo que a protagonista eventualmente conclui não ser uma força antagonista, mas sim uma força motriz sobre a qual temos influência, até certo ponto. “In-Yun” é o conceito central do filme, um termo coreano que a Nora explica: “é um In-Yun se dois estranhos se cruzarem na rua e as suas roupas se tocarem acidentalmente. Porque significa que houve algo entre eles nas suas vidas passadas. Se duas pessoas se casam, dizem que é porque havia oito mil camadas de In-Yun. Em mais de oito mil vidas.”
Temos aqui duas forças distintas em ação: o destino, que nos coloca em rota de colisão com uma infinidade de possibilidades no decurso do nosso caminho; e o livre-arbítrio, que nos permite caminhar entre dita infinidade com o propósito de chegarmos ao destino que desejamos. É interessante esta dualidade do termo “destino”, podendo ser definido como fado, uma força que atua sobre nós; e como local de chegada, escolhido pela pessoa em viagem. Vidas Passadas procura dissecar estas duas noções, quer através do guião, quer através do diálogo.
A meu ver, existem dois momentos fundamentais onde as duas forças previamente mencionadas agem sobre os personagens. Por um lado, o momento de separação dos protagonistas adolescentes parece carecer de livre-arbítrio, ambos impotentes face às decisões tomadas pelos adultos e às razões que os levaram a agir. Mesmo no que toca aos pais de Nora, será que a sua decisão de emigrar foi, de facto, fruto do livre-arbítrio? Ou será que as condições socioeconómicas lhes forçaram a mão de forma semelhante a um fado? A procura mútua dos dois protagonistas, separados por um oceano, é resultante de algo que terminou, mas permaneceu por resolver durante as suas infâncias? Ou será devido ao In-Yun que os leva a gravitar um até ao outro, graças à conexão que tiveram em vidas passadas? Nora alinha-se com a primeira opção, apologista da sua agência no rumo que a vida toma. Creio que o grosso das audiências ocidentais partilha este ponto de vista, mas os românticos incuráveis não conseguem evitar não ponderar o segundo cenário.
Por outro lado, o momento de separação dos protagonistas adultos transborda livre-arbítrio. Deixando o mundo da infância para trás, Vidas Passadas esbofeteia o espectador com dura realidade – escolher algo implica perder algo. Ou, como a mãe da Nora brilhantemente reformula: “se deixares algo para trás, também ganhas algo”. Nora abdica de uma relação com o homem com o qual partilha uma profunda ligação desde criança, uma ligação que pode ter vindo a ser fortalecida há milhares de vidas. Ao abdicar do seu futuro com Hae Sung, Nora cimenta a sua vida em Nova Iorque e a relação com Arthur, elevando-a a um novo patamar de entrega e partilha.
Com isto não pretendo sugerir que a relação não tinha substância até então, pelo contrário. Muito pelo contrário. O momento em que nos apercebemos que Vidas Passadas nunca mostra intimidade física é chocante, pois o nível de proximidade entre Nora e Arthur vai muito além das relações tradicionais em filmes. Após o reencontro entre os amigos de infância em Nova Iorque, sucedem-se três cenas onde Nora conversa com Arthur acerca da forma como o reencontro a fez sentir. O enquadramento desta conversa procura não catastrofizar o reencontro – em vez de tratar o reencontro como um obstáculo que impede o filme, bem como a relação, de continuar, o filme torna-o num tema de conversa que surge enquanto a história continua o seu rumo. Por outras palavras, Celine Song decide não tornar este evento num gatilho disruptor da relação da protagonista com Arthur, mas sim num catalisador de um diálogo saudável e natural, a partir do qual o casal aprende um pouco mais acerca um do outro. O diálogo nunca adota um tom confrontacional, havendo uma genuína vontade de ambas as partes de comunicar sobre a complexidade da situação de forma construtiva e saudável.
Em suma, Vidas Passadas é um filme que, apesar da sua narrativa despida e elenco reduzido, transparece uma qualidade expansiva graças à sua cinematografia, à realização, à complexidade e sofisticação do guião e ao talento do elenco. Celine Song conseguiu criar uma obra de artes que balança as duas faces do destino – fado e livre-arbítrio – bem como ideologias opostas do oriente e do ocidente. O filme prevalece no meio termo entre estas duas realidades, promovendo aceitação, simpatia, empatia e autoconhecimento.
Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Baldaia.