A realizadora Marie Amachoukeli foi entrevistada sobre o seu mais recente filme, A Ama de Cabo Verde, filme que foi apresentado na Semana de Crítica do Festival de Cannes. Estreia em Portugal a 11 de Julho.
Sinopse: Cléo tem seis anos. Adora Glória, a ama que a criou desde que nasceu. Mas Glória deve regressar urgentemente a Cabo Verde, para junto dos seus filhos. Antes da partida, Cléo pede-lhe que prometa que vão voltar a ver-se o mais depressa possível. Glória convida-a a passar um último Verão juntas, na ilha, com a sua família.
A entrevista que se segue foi disponibilizada pela distribuidora Alambique, e corresponde a excertos da entrevista completa realizada pela Pyramide Films.
O filme é dedicado a Laurinda Correia, quem é ela?
Marie Amachoukeli: Laurinda é a mulher que cuidou de mim quando eu era pequena. Era a porteira do meu prédio, uma migrante portuguesa, e passei grande parte da minha infância na sua casa, com os seus filhos. Quando eu tinha seis anos, ela disse-me que ia voltar para a terra para aí abrir um estabelecimento e começar uma nova vida junto da família. Foi o primeiro grande abalo da minha vida. Ainda hoje mantemos o contacto, trocamos postais, ela manda-me os parabéns nos anos, e quando vou à casa dela em Portugal, vejo fotos minhas entre as dos seus filhos e netos. Continua a tratar-me por “minha filha”. Com este filme quis contar a história de alguém que ganha a vida a cuidar de uma criança e de como, às vezes, isso transborda. Na nossa sociedade, onde o lugar da mãe é sagrado, acredito que seja um tabu dizer que não são apenas os pais que podem ter um amor transbordante pelos filhos, ou que, inversamente, uma criança pode sentir esse amor absoluto por alguém que não é seu pai ou sua mãe. Nem o contamos à nossa própria família. É um amor secreto, quase clandestino, que nunca se expressa. E, precisamente por ser secreto, quis contá-lo.
O papel de ama tem sido representado no cinema, mas em registos muito diferentes. Porque quis contar a história desta personagem?
Marie Amachoukeli: Acho incrível pensar que todos os dias, aqui ou noutro sítio, há mulheres que cuidam de filhos que não são seus. Essas mulheres fazem parte do quotidiano de milhões de famílias, mas é como se não quiséssemos olhar para elas, a não ser de longe, e muito menos questionar a nossa relação com elas. Nomeamo-las pela sua função, “ama” na melhor das hipóteses, mas esta oculta, obviamente, mais funções. Quando estava a escrever o argumento, uma americana disse-me: “É um filme de amas!”. Nos Estados Unidos, é um género em si, mas trata-se geralmente de comédias, como “Madam is Served” ou “Papá para Sempre”… E, claro, “Mary Poppins”, um filme de culto da minha infância. Este último é inclusivamente a referência para o meu filme, com a sua ideia de misturar ficção e animação. Sempre que o revejo, acho-o brilhante, não só porque é maravilhosamente representado, cantado e dançado, mas porque é a história de uma ama que chega sabe-se lá de onde e que mantém um vínculo muito forte com as crianças, enquanto os pais estão ocupados algures. Mary Poppins tem uma enorme ternura por aquelas duas crianças, e vice-versa, mas as convenções impedem-nos de o expressar. O filme está imbuído desse amor, mas o mesmo nunca é dito ou formulado. De certa forma, é criptografia.
A esta relação “mãe-filha” associa-se outra relação tabu: a relação norte-sul.
Marie Amachoukeli: Glória é aquilo a que chamamos imigrante económica: veio para França para trabalhar e sustentar- se. É o tabu de uma relação desequilibrada, do legado da colonização que levou ao domínio de um continente sobre outro. Quis também mostrar que se trata aqui de dinheiro, assumindo-o directamente, a pretexto de falarmos de amor. Então faço a pergunta em vários pontos do filme: é amor pago ou amor verdadeiro, é um trabalho ou uma vocação amorosa? Há uma injustiça em relação aos filhos de Glória que permaneceram em Cabo Verde. Este é um caso muito habitual: crianças que crescem sem a mãe, porque ela é obrigada a deslocar-se para os sustentar. O que é que isso questiona, aqui e lá? Porque se fala tão pouco disso, se é tão comum? Será que não queremos ver?
O seu encontro com a cabo-verdiana Ilça Moreno, que interpreta Glória, foi decisivo?
Marie Amachoukeli: Já conheci muitas amas, de várias gerações. Elas partilharam as suas histórias comigo. E então conheci Ilça Moreno, através da directora de casting que se apaixonou logo por ela, após um primeiro encontro e um primeiro teste. A Ilça parece-se muito com a personagem de Glória. O seu percurso aproxima-se muito com o do filme, ou talvez seja o contrário. Originalmente, ela era enfermeira em Cabo Verde. Quando chegou a França, cuidou de crianças, em particular de um menino deficiente, com quem viveu durante dois anos e a quem se apegou muito. Com algum pudor, contou-me parte da sua vida, falou-me da sua aldeia e dos seus três filhos que teve de deixar com a mãe. O encontro com a Ilça permitiu-me enriquecer o argumento, inseri-lo na realidade de um país. A Ilça já tinha feito um pouco de teatro em Cabo Verde, ela é engraçada, tinha uma disposição natural. Além disso, gosta de aventuras e a ideia de regressar a Cabo Verde para fazer um filme entusiasmou-a muito. Decidimos então embarcar juntas nesta aventura. Logo aquando das primeiras expedições para repérage em Cabo Verde, juntamente com a Bénédicte Couvreur, minha produtora, apercebemo-nos de que a história de Glória e de seus filhos era a de quase todas as pessoas que conhecemos. Como Fredy Gomes Tavares, que interpreta César no filme, cuja mãe está em França e que ele nunca viu. E Abnara Gomes Varela que faz de Fernanda… Lá, muitas crianças são criadas por uma avó, uma tia, um tio.
A narrativa do filme é construída a partir do ponto de vista de uma menina de apenas seis anos…
Marie Amachoukeli: Sim, isso foi fundamental para mim. Perguntei-me muito sobre a questão do olhar, a montante e a jusante, durante as filmagens e durante a montagem. Este é o ponto de vista de uma criança e não do documentário. Para mim, o mais importante foi trabalhar o fora de campo. A ideia era estreitar a visão da criança sobre aquilo que ela sente e reorientar todo o filme através deste prisma. Assim, no filme, o que vemos de Cabo Verde é sobretudo o que imaginamos, esse famoso fora de campo. Isso permite-me não ter um discurso de cartão postal ou um discurso pretensamente realista, e de me manter sobretudo no terreno das sensações e dos sentimentos.
A parte cabo-verdiana foi rodada no Tarrafal a Norte de Santiago, a maior ilha do arquipélago.
Marie Amachoukeli: É um terreno vulcânico, cheio de excessos: nas nossas relações, no nosso imaginário, nos nossos sentimentos sobre o mundo, onde tudo é uma epopeia. Esse também foi o desafio da encenação. Eu queria fazer um filme sensorial, onde tudo permanece para toda a vida, em nós, para sempre, como se estivesse marcado com um ferro quente.
Essa parte do filme é em crioulo e não em português.
Marie Amachoukeli: Ainda que o português seja a língua oficial do país, queria que essa parte fosse na língua falada na ilha. O crioulo é a língua dos escravos, uma língua que não se aprende na escola, uma língua que também tem sido, em certo sentido, tabu, desde a época colonial. Tive aulas de crioulo, graças ao Arlindo Semedo Varela, que é operário em França e quer transmitir a sua língua. Ele foi um professor extraordinário, muito paciente. Usou canções cabo-verdianas para me ensinar o vocabulário básico e a riqueza da poesia crioula. É algo a que estou muito apegada. O meu pai é georgiano. Foi obrigado a falar russo durante a União Soviética, mas a sua língua materna era o georgiano. Foi, portanto, necessário garantir que a língua sobrevivesse como contrapoder ao imperialismo da época. Além disso, estudei na Catalunha. Compreendi a importância do catalão e admiro quem luta pela sua língua. Isso não tem nada que ver com nacionalismo, ao contrário do que às vezes se pode pensar em França. E, acima de tudo, gosto da ideia de nem sempre entender o que as pessoas me dizem, mas de sentir o que é dito, como uma música cujas nuances entendemos mesmo que não tenhamos estudado teoria musical. Esse é também o ponto de vista de Cléo: de vez em quando, as conversas são em crioulo, ela não precisa de legendas para entender que se trata de um assunto sentimental e qual a sua abrangência. Isto nem sempre é fácil de encenar e levanta a questão do que traduzimos ou não, mas isso interessou-me muito.
No filme, há uma primeira parte na região de Paris, uma segunda em Cabo Verde e uma terceira encaixada nas outras duas que seria o território da animação. O que é que a animação mostrou que uma filmagem ao vivo não conseguiria mostrar?
Marie Amachoukeli: A animação é, para mim, o acesso mais directo ao mundo interior da criança, ao que a Cléo sente e que não consegue dizer porque não tem palavras. Quando somos crianças, ouvimos os adultos contar pedaços de histórias que não entendemos, porque eles não se dão ao trabalho de nos explicar, ou porque acham que têm de nos poupar, ou porque são noutra língua… Então, criamos mundos incríveis. Com a animação, quis mostrar como a Cléo imagina a ida da Glória para a França. Quando eu era pequena, ouvi relatos de exílio na minha família, histórias múltiplas e rocambolescas, mas eles não me contavam tudo, porque os contextos políticos eram complicados. Então eu fantasiava, inventava as minhas próprias imagens.
Vê aqui o trailer do filme A Ama de Cabo Verde: