O realizador Bertrand Bonello ©Carole Bethuel

Bertrand Bonello e a sua ‘Besta’

Entrevistas

O realizador Bertrand Bonello foi entrevistado sobre o seu mais recente filme, A Besta, uma nova distopia futurista protagonizada por Léa Seydoux. Inspirado livremente no conto “A Fera na Selva” de Henry James, o realizador francês Bertrand Bonello propõe uma viagem no tempo, mental, física, emocional e sensorial, num misterioso thriller de ficção científica.

Paris, 2044. A inteligência artificial resolveu os problemas da humanidade ao apagar as emoções humanas. Gabrielle (Léa Seydoux) deve escolher entre manter as suas emoções ou encontrar um trabalho interessante. E, assim, possivelmente viver o amor com que sonha. Para se livrar das emoções, ela mergulha nas vidas passadas, apaixonando-se continuamente por diferentes encarnações de Louis (George MacKay), primeiro em Paris nos anos 1910 e, depois, em Los Angeles em 2014.

Depois da sua recente antestreia no festival IndieLisboa, o filme chega às salas de cinema em Portugal a 27 de Junho. A entrevista que se segue foi disponibilizada pela distribuidora Alambique, e corresponde a excertos da entrevista completa realizada pela Kinology.

Por onde começaria para nos falar de A Besta?

Bertrand Bonello: Pelo presente do filme. Por 2044. O filme é uma quase-distopia. E digo “quase” porque sinto que, dia após dia, nos temos vindo a aproximar da realidade presente no filme. Eu queria que fosse um futuro suficientemente próximo para que o espectador o achasse imaginável. Para que quase conseguisse tocá-lo e conseguisse projectar-se nele. O filme pode resumir-se de uma forma muito simples. Numa altura em que a Inteligência Artificial resolveu todos os problemas da humanidade ao assumir o poder, uma mulher inteligente deve escolher entre manter as suas emoções ou encontrar um trabalho interessante. E, assim, possivelmente viver o amor com que sonha. Para se livrar das emoções, ela deverá mergulhar nas suas vidas passadas para limpar os traumas antigos que lhe contaminam o inconsciente. No processo, confronta-se com uma história de amor que se revela transversal às suas vidas e a várias épocas, o que vai obviamente dificultar-lhe a escolha. Trabalho ou emoções… É um dilema atroz, para o qual talvez caminhemos, numa sociedade cada vez mais controlada, e onde a ausência crescente de relação com o secreto rima com a ausência de liberdade, mas que me permitiu desenvolver uma narrativa e uma reflexão sobre uma história dos sentimentos. Tendo-se o presente do filme tornado quase inabitável apesar – ou por causa – da ausência de problemas, o passado assume-se como refúgio.

O filme é muito contemporâneo nesse aspecto. Têm saído muitos artigos ligados ao medo do desenvolvimento da Inteligência Artificial. Aos perigos. À ética, à moralidade, a uma mudança no mundo que aterroriza.

Bertrand Bonello: Sim, quando o escrevi, não pensei que tudo estaria tão perto. Na verdade, ao situar o filme em 2044, talvez tenha até escolhido uma data demasiado longínqua! Essa é obviamente a questão mais política do filme. Quando leio que o Professor Geoffrey Hinton, um pioneiro da IA, diz que se arrepende da sua invenção e de ter criado um monstro… Cito-o: “As versões futuras desta tecnologia podem ser um risco para a humanidade”. É também isto que o filme diz, de outra forma, com outra premissa. A catástrofe é que já não há catástrofes. É um movimento na direcção do desaparecimento do indivíduo e da singularidade. Se fizermos desaparecer o medo, também faremos desaparecer a sensação de estar vivo. Então sim, há uma frieza e uma solidão no filme em 2044, mas que infelizmente me parece mais próxima da realidade.

É a primeira vez que trabalha com ficção científica. Como procedeu e que dificuldades específicas encontrou?

Bertrand Bonello: Isto revelou-se ainda mais difícil por não ser, como espectador ou leitor, um especialista no género. Mas, apesar disso, tinha alguns indicadores sólidos. Primeiro, queria que a distopia decorresse numa data próxima. Depois, queria evitar visualmente os dois caminhos principais: o de uma ultra-tecnologia, que embora possa impressionar, muitas vezes está condenada a ficar ultrapassada, ou o de uma visão pós-apocalíptica onde tudo não passa de ruínas. Para tal, preferi proceder por subtracção, por remoção de coisas. Apagando partes dos cenários, esvaziando a cidade, alterando mais o universo sonoro do que o arquitectónico, colocando animais em Paris, eliminando as redes sociais ou a Internet, tornando as relações entre as pessoas mais incorpóreas do que virtuais. Não existe qualquer futurismo extravagante. A evolução do mundo é muito mais comportamental e ideológica. É um mundo repleto de uma nova serenidade, aparentemente reconfortante, mas, no fundo, aterradora. Uma história de ficção científica é sempre baseada numa premissa inicial e a forma de deixar isso claro para o espectador é expô-la bem cedo e de forma muito directa. Daí surgir logo no início a cena em que a Gabrielle vai a uma espécie de entrevista de emprego respondendo a perguntas feitas por uma voz off (a do realizador Xavier Dolan, também co-produtor).

Pode falar-nos daquilo a que chama “uma história dos sentimentos”?

Bertrand Bonello: Pode dizer-se que, em 1910, as pessoas exprimem os seus sentimentos; em 2014, os sentimentos são reprimidos; em 2044, são suprimidos. O filme abraça um certo código de melodrama, nomeadamente o fracasso amoroso. Em 1910, os dois personagens desencontram-se, porque Gabrielle não cede. Ela tem medo de amar e eles morrem. Ela rejeita-o e um século depois, em 2014, Louis está obcecado com a ideia de que nunca nenhuma mulher o amou. É como se encontrássemos o mesmo personagem sem que ele soubesse, cem anos depois. Ele transforma esse fracasso em vontade de matar, porque os tempos, os Estados Unidos, criam esse tipo de personagens. Mas, na verdade, o que ele tem é medo e ela apercebe-se disso. Acima de tudo, Gabrielle olha para ele como uma criança perdida. Daí que esteja pronta a abrir-lhe a porta, mesmo que ele próprio se recuse a entrar… Ela vê nele algo que ele mesmo não vê, tal como um século antes, fora ele a ver nela algo que ela não via. Ela espera resgatá-lo. Mas desta vez é ele quem não cede. Eles morrem novamente. Em 2044, ela entende que o medo que sempre sentiu não passa do medo de amar. Mas é demasiado tarde. Para Gabrielle, a experiência da purificação cria memória. Assim, consegue agir em 2044 com a recordação de tudo o que viveu. Para Louis, a experiência cria amnésia emocional. Então ele acaba com tudo.

No início de A Besta, encontramos um famoso conto de Henry James, “A Fera na Selva”, que já foi objecto de diversas adaptações para teatro e cinema. O seu filme não só ultrapassa esse quadro, como inverte a premissa inicial: no seu caso, é a personagem feminina e não a masculina que pressente que um dia algo grande e terrível surgirá na sua vida.

Bertrand Bonello: Se fiz uma inversão em relação às personagens, é porque um dos desejos que esteve na origem deste filme foi ter no seu centro uma mulher: queria que A Besta fosse ao mesmo tempo um filme sobre uma mulher e sobre a actriz que a interpreta. “A Fera na Selva” é um texto que me perturba há muito tempo. Mas só usei o argumento, o da fera escondida, o do medo de amar. A Besta é uma adaptação mais que livre… Na sua maior parte, os diálogos que ouvimos na longa cena do baile, no início, vêm de James. São falas que considero magníficas. Depois, o filme desvincula-se do conto, para se desdobrar em três períodos distintos, 1910, 2014 e 2044. Cada um deles tem a sua própria dinâmica, os seus desafios, o seu terror, a sua gestão de sentimento e, juntos, criam uma só história de amor ímpar, atravessada por uma relação com a memória, tudo tendo como pano de fundo um cenário de catástrofe permanente. A cada vez, a catástrofe pessoal está ligada a uma catástrofe geral: a inundação em Paris em 1910, uma espécie de amnésia comportamental ligada às redes sociais e à Internet em 2014, e a catástrofe ainda pior de um mundo sem catástrofe em 2044.

É a primeira vez que uma mulher ocupa um papel tão central nos seus filmes.

Bertrand Bonello: É verdade. Apollonides era um retrato de grupo. Ali, havia sobretudo a vontade de fazer o retrato de uma mulher e de lidar de forma frontal com o amor e o melodrama. Depois, confrontá-lo com o cinema de género, pois acho que há um diálogo entre o romantismo e o género. O meu desejo foi entrelaçar o íntimo e o espectacular, o classicismo e a modernidade, o conhecido e o desconhecido, o visível e o invisível. Para falar do que talvez seja o mais doloroso dos sentimentos, o medo de amar. É também o retrato de uma mulher que quase se torna um documentário sobre uma actriz.

De que gosta especialmente na Léa Seydoux?

Bertrand Bonello: É a terceira vez que nos encontramos, mas é a primeira em que ela é a personagem central. Não me ocorreu nenhuma outra actriz capaz de interpretar a Gabrielle em três épocas. A Léa Seydoux tem um lado atemporal e moderno. Isso é raro. A sua beleza é bem diferente nos três períodos do filme. Conheço-a bem e há muito tempo, mas quando a olho através da câmara, é impossível saber no que pensa. Ela é misteriosa. A Léa não é uma actriz académica, na sua forma de abordar o trabalho. Ela não sente necessariamente vontade de estar muito preparada ou de saber tudo sobre a sua personagem ou mesmo sobre o guião. Poder-se-ia até dizer que cultiva uma certa incerteza ou indecisão, mas esta indecisão beneficia-a, permite-lhe deixar-se guiar, abandonar-se e fazer surgir as coisas. Além disso, tem algo que valorizo muito, uma voz muito bonita. Uma articulação magnífica, seja em francês ou inglês. Ela habita as respostas e também os silêncios. Por tudo isso, e por outras razões ainda, ela lembra-me, às vezes, a Catherine Deneuve. A Léa está tantas vezes sozinha no filme – pessoalmente, mas também fisicamente, nos planos ou nas cenas – que o filme também se torna uma espécie de documentário sobre ela. Ela está muito sozinha em Los Angeles, muitas vezes diante do computador. Muito sozinha em 2044, onde todas as interacções com os outros são apenas vozes no espaço, incorpóreas.

O filme é uma verdadeira viagem…

Bertrand Bonello: Sim, e não só no tempo. É uma viagem mental, física, emocional e sensorial. Uma viagem de 2h25. Viajar leva o seu tempo. Caso contrário, não vemos nada, não sentimos nada. É, sem dúvida, um só filme, mas contém três universos. É preciso instalá-los, compreender os seus ambientes, apresentar as personagens, as situações. É preciso dedicar algum tempo à cena do baile, explicar as convenções. Além disso, sinto que a relação com a duração dos filmes mudou efectivamente. Numa época em que o cinema nas salas está sob ataque, há que criar um desejo de estar numa sala de cinema e, portanto, um desejo pela experiência. Foi também isso que tentei fazer.

Abrindo de forma audaciosa – a cena em fundo verde em que o Bertrand dirige a Léa Seydoux – A Besta encerra com outra ousadia: a ficha técnica final num QR Code que o espectador é convidado a activar.

Bertrand Bonello: Pareceu-me que 1910 ressoaria de forma diferente com tal prólogo. Este prólogo contamina o início do filme. Este início é também uma forma muito simples de dizer: o meu filme é sobre ela. Quanto ao QR Code, ele é muito coerente com o filme. Em geral, os créditos são um momento de emoção, com música, o desfile de nomes, os espectadores que se vão levantando e se preparam para ir ao encontro da luz exterior. Aqui estamos num mundo onde os afectos foram banidos, por isso é lógico que também sejam banidos dos créditos. Só Gabrielle consegue ainda sentir. Acho que isso ainda a faz sentir-se mais só.

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