As capacidades que o ser humano tem de superação, coragem, devoção e tantos outros atributos semelhantes em pujança humana, estarão sempre limitadas pelas capacidades físicas e biológicas que são a base para tudo o resto, e quando estas falham ou são completamente eliminadas, não existe vontade de superação suficiente que possa mudar ou condicionar a realidade, e a adaptação a essa nova realidade pode ser simplesmente insustentável. No filme “Um Café e um Par de Sapatos Novos” o espectador é levado numa viagem sem regresso, onde a condição humana a diversos níveis vai-se acabando a pouco e pouco, de forma muito crua, realista e arrebatadora.
A realização de Gentian Koçi evoca uma simplicidade e naturalidade à acção que encaixa perfeitamente na dinâmica e na atmosfera do filme. Com a maioria dos planos filmados dentro de casa (espaço que efectivamente é um reflexo do mais íntimo de cada pessoa, e um local seguro onde existe uma maior disposição para a exposição dos mais variados sentimentos e momentos de intimidade com as outras pessoas e com a própria pessoa), assim como a não utilização de música e a opção pelos sons naturais e envolventes da acção, que também achei uma opção acertada, ficamos com uma sensação de pertença e ligação ao ambiente, onde uma banda sonora poderia ser um elemento de distracção em relação aos diálogos e às personagens em si. Estas opções acrescentam uma profundidade extra ao filme, cujo tema já é, por si só, algo muito pesado e dramático, e para além disso conseguimos sentir que estamos ali naquele espaço, que fazemos parte dele, e com isso criamos uma ligação mais envolvente com a narrativa.
Narrativa essa que de forma gradual vai elevando a carga dramática, acompanhando o público a um final quase inevitável, deixando quase logo tudo em aberto, e é esta evolução e intensificação dos acontecimentos e das relações onde recaem os pontos mais fortes desta obra, juntamente com as magníficas interpretações dos três protagonistas.
Este é daqueles filmes muito focado em poucas personagens e nas suas relações pessoais e interpessoais, onde cada cena tem uma carga dramática diferente, mas mantendo o foco nessas mesmas personagens, o que por norma poderá resultar se o elenco tiver uma química e uma ligação que passa para o outro lado da tela. E aqui acontece isso mesmo, não só pela ligação que existe mas pelas interpretações de Drita Kabashi, Edgar Morais e Rafael Morais, que conseguem estar perfeitamente em sintonia com o espaço e a narrativa, situando as suas personagens onde devem estar fisica e mentalmente, assim como ter um vínculo e personalidades próprias que são exibidas ao longo do filme pelas suas interpretações assim como pelo guião e as suas falas.
No final estamos perante um filme dramático bastante intenso e delicado, com uma narrativa fortemente dramática e interpretações igualmente forte. O guião centra-se numa história muito bem delineada e definida, e isso será para mim o ponto negativo deste filme, sendo que também ganha ao não ser um filme ‘arriscado’ e sim seguro de si mesmo. Assim, aconselho vivamente a que todos possam assistir, deixando aqui um aviso de que não vai ser em nada um filme ‘leve’.
“Um Café e um Par de Sapatos Novos” estreia a 31 de Outubro nos cinemas em Portugal.