Realizador João Rosas

A Morte de Uma Cidade: O Pão de Cada Dia

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Com estreia em 2022 no Doclisboa, A Morte de Uma Cidade, tal como a construção de um edifício, levou o seu tempo a assegurar distribuição pelas salas nacionais. A espera termina a 5 de setembro do corrente ano, contudo, para graça do seu arquiteto, o realizador João Rosas, esta não foi uma obra estagnada no entretanto. Tem sido exibida em dezenas de festivais por todo o mundo e chegou a arrebatar o Prémio de Melhor Documentário Doc Alliance, em 2023.

Galardões à parte, eis um documento que nos leva às vísceras dos casulos de Lisboa. Os estaleiros de obras que estão a transformar a capital que o realizador gostaria de mostrar à filha, Carolina, mesmo antes de nascer. Não fosse a evocação imagética, ao passo que as transformações ocorrem nos nossos dias, a tarefa seria impossível. Contudo, mais do que nostalgia precoce, a imagem de uma cidade esquecida, A Morte de Uma Cidade empenha-se a observar os estaleiros enquanto antros de violência. É sobretudo aqui que o filme adquire os seus contornos de maior relevo.

Vislumbramos os bastidores e, apesar das relações ocasionais que se estabelecem, encontramos uma força de trabalho imigrante desgastada e desprotegida. Ansiosa pelo pão de cada dia. Foi, assim, particularmente desafiante para Rosas estabelecer pontes com os trabalhadores, dado que “empunhar uma câmara num estaleiro, já de si um espaço violento, é um gesto que reforça essa violência. Como tal, gera uma enorme desconfiança e medo, como se fosse uma arma ou um dispositivo de controlo.”

Entrevista a João Rosas

Bernardo Freire: As empresas de trabalho temporário exploram a imigração irregular dos seus inscritos para fugir aos pagamentos devidos ou até para oferecer condições vergonhosas de segurança e saúde no trabalho. Acredita que ainda há algum desconhecimento por parte da sociedade civil nesta matéria ou trata-se de ignorância seletiva?

João Rosas: Diria que por vezes há um certo desinteresse, sim, mas não se trata propriamente de desconhecimento ou ignorância, antes de uma dificuldade em compreender este tipo de fenómenos em toda a sua complexidade. Eu próprio me deparei com essa dificuldade enquanto fazia o filme, bem como os trabalhadores que são as principais vítimas desta organização do mercado de trabalho, uma vez que este tipo de relações laborais são propositadamente opacas e dúbias, não sendo fácil desconstruir o mecanismo que as rege. Para além disso, vivemos num país em que o desinteresse (quando não mesmo hostilidade) pela condição imigrante é ainda grande, simplificando situações muito complexas e ricas de um ponto de vista humano. Importa realçar que é de uma hipocrisia vergonhosa o próprio Estado favorecer este tipo de exploração através de leis da imigração que fragilizam os imigrantes ou não fiscalizando as condições de trabalho de forma mais eficaz.

Imagem/still do filme "A Morte de Uma Cidade"
Fotograma do filme “A Morte de Uma Cidade”

Bernardo Freire: Há um caso em que nem o João esconde a indignação. Quando pergunta ao Sr. Armando, no fim do trabalho: “Então, ainda vai dar um passinho de dança?”, ao qual lhe responde “Não, não. Agora vou sair daqui e trabalhar num café até às 22h e tal da noite e depois é que vou para casa.” A frase “ainda vai trabalhar num café agora” salta-lhe da boca ao mesmo tempo que arregalamos os olhos. Para não falar do facto de o café pertencer ao mesmo patrão da empreitada. Como fez a gestão das emoções ao longo das filmagens?

João Rosas: A rodagem durou dois anos e as minhas emoções passaram por várias fases, mas apesar da revolta impotente que sentia perante certas situações pessoais ou laborais, sobretudo durante os meses da demolição, a verdade é que muitos dos dias no estaleiro eram dias felizes e prazeirosos, sem dúvida porque ali fui criando relações de amizade que extravasavam a realização do filme. O cinema nasce para mim dessa ideia de relação com as pessoas e a verdade é que passava muito tempo sem filmar e apenas a conviver. Não exagero se disser que era um prazer ir trabalhar a maior parte dos dias. Sempre encarei A Morte de uma Cidade como um contributo humilde para dar a ver uma realidade dura e revoltante, complexa, mas sem nunca ter a pretensão de fazer um filme que pudesse mudar o mundo. Acho que o cinema não cumpre essa função, por muito que goste de filmes politicamente empenhados (como penso que é o caso deste). Interessava-me levantar questões, mais do que dar respostas. Nesse sentido, tendo noção dos limites do cinema, a minha revolta, tristeza ou impotência perante as situações mais revoltantes sentia-a enquanto cidadão mais do que como cineasta.

Bernardo Freire: A propósito da ética da imagem, filmar pessoas em condições tão precárias deve acarretar uma reflexão que está intimamente relacionada com o processo criativo. O que fez para garantir que, no seu entender, filmou estes trabalhadores de forma justa?

João Rosas: A discussão sobre a forma justa de filmar é antiga mas perigosa, ou pelo menos algo essencialista, e não me interessa particularmente. Não existe uma regra, a não ser talvez recusar-me a filmar pessoas sem que elas saibam que o estou a fazer. De resto, e como disse acima, o cinema nasce para mim da relação que estabeleço com certos lugares ou certas pessoas. Essa relação deve ser igualitária, horizontal e honesta. A partir daí, a rodagem é um processo muito exigente do ponto de vista emocional e humano, pois cada situação levanta desafios morais e emocionais (mas também técnicos) diferentes.

Bernardo Freire: Há nesta metamorfose citadina um tom de elegia, particularmente notório na narração que acompanha algumas sequências. Quais foram as suas influências artísticas para filmar este movimento decadente?

João Rosas: A grande influência foi a escrita de Sebald, autor alemão que muito me marcou desde a primeira leitura e que ainda hoje me acompanha. O seu livro Os Emigrantes é das coisas mais assombrosas que já li na vida. A ideia de destruição está muito presente na sua literatura e esteve também na minha cabeça desde o primeiro dia em que entrei no estaleiro.

Bernardo Freire: Atualmente Lisboa lidera a subida de preços no mercado imobiliário de luxo. Como encara o impacto da especulação imobiliária na vida dos trabalhadores que documentou e na identidade da cidade?

João Rosas: A maior parte dos trabalhadores que filmei mora fora do centro da cidade, não só por causa do preço das casas, como é óbvio, mas também porque é aí que tem as suas redes de sociabilidade. E a verdade é que a explosão da construção e reabilitação é vista, no caso das pessoas que conheci no estaleiro, como algo positivo, uma vez que significa mais trabalho depois de situações de grande pobreza durante os anos da crise e intervenção da troika. A identidade das cidades está em constante mutação. Claro que é com tristeza que vemos desaparecer certos lugares que faziam parte da nossa vivência de Lisboa, mas outros surgirão tornando-se os lugares predilectos de outras pessoas que virão. O que me parece importante é que certas pessoas não sejam excluídas da vivência da cidade por razões económicas, o que sem dúvida acontece em Lisboa hoje em dia, pois a identidade das cidades é feita do encontro com o Outro (tal como o cinema que tento fazer).

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