Isolamento e ligação. As duas contradições do mundo online. Um meio com um potencial opressivo, mas também um potencial libertador. Numa realidade cinzenta, as cores vivas de um jogo de fantasia estimulam a imaginação de Appoline, em que ela pode ser uma guerreira que destrói exércitos dos mais variados inimigos. Através deste jogo, ela consegue criar uma ligação com o seu irmão, Pablo, que a introduz a este jogo com possibilidades infinitas de fantasia. A vida, no entanto, continua a correr. O encerramento anunciado do jogo, uma nova relação amorosa que ocupa a vida do irmão com um rapaz chamado Night e um conflito de gangues colocam esta fantasia e esta ligação em questão. Em Devorar a Noite, Caroline Poggi e Jonathan Vinel apresentam-nos um drama criminal com uma superfície profundamente violenta que, no entanto, no seu âmago apresenta um coração que bate com doçura e nostalgia e nos comove de uma forma incomum.
O mais refrescante neste filme é a forma como utiliza o dispositivo do videojogo. Estamos habituados a ver videojogos serem tratados em filmes como nada mais do que uma fonte de entretenimento ou até como fontes de vício. Mas, em Devorar a Noite, o videojogo é algo que vai mais além e que dá um verdadeiro peso emocional ao desenvolvimento dos personagens. Funcionando como uma espécie de dimensão paralela à história que decorre na vida real do filme, é um dispositivo em que se manifesta de forma genuína a ligação humana entre Appoline, Pablo e Night. O videojogo, assim, contribui de uma forma verdadeiramente inovadora para a narrativa do filme, mostrando como relações se podem desenvolver através do online, como este não é apenas uma fonte de alienação – algo que qualquer pessoa que cresceu com a internet e videojogos se consegue relacionar.
Esta estrutura narrativa torna a história que se desenrola em paralelo mais cativante, desde o romance que se desenvolve entre Pablo e Night, ao conflito entre estes os dois e um gangue de tráfico de droga que se sente ameaçado pelo seu comércio de drogas no seu território. Esta mistura de géneros e técnicas que, à partida, poderia ser tão díspar que criaria vários filmes que se contradiriam entre si, aqui derretem numa simbiose que torna Devorar a Noite num filme muito mais emocionante e poético. Através de um mundo sonoro envolvente, permeado pela banda sonora eletrónica de ssaliva, sentimos este coração de nostalgia inquieta que bate por baixo desta história sobre a condição humana num mundo violento e cada vez mais alienado.
Elevado pelas interpretações de Théo Cholbi, Erwan Kepoa Falé e Lila Gueneau, que brilham com uma sensibilidade tremenda, Devorar a Noite é ao mesmo tempo o drama familiar, o romance e o thriller que precisávamos nesta era digital. Um filme que, no que parece ser um meio emocionalmente estéril, encontra a profundidade de emoções que são possibilitadas, as ligações humanas que são potenciadas, e celebra isso. Poggi e Vinel mostram-nos que a tecnologia não é necessariamente uma ameaça ao humano, mas sim algo que o pode ampliar. Também nos mostram que o humano tem mais formas de se expressar do que poderíamos pensar. Devorar a Noite, apesar da sua obscuridade e violência, enche-nos com uma esperança – esperança essa que primeiro se estranha, e depois se entranha.
Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.