Crítica: Downfall / Cinco estrelas por Francisco Empis

Downfall: Uma obra inequívoca na execução, mensagem e reflexão

5 estrelas Críticas

Ainda não é Hitchcock, mas desta vez já não se trata de Highschool MusicalDownfall (2004) retrata, através de relatos reais e, certamente, alguma criatividade dos escritores, os últimos dias do Terceiro Reich alemão, mais concretamente no bunker do Führer, em Berlim, onde este acaba por cometer suicídio. Esta longa-metragem é aclamada pela interpretação soberba de Bruno Ganz como Adolf Hitler e pelo aparente (até porque ninguém pode confirmar com certidão) realismo da eclosão do Partido Nacional-Socialista. No meu entender, trata-se de uma obra com camadas, variando desde algo mais superficial, como a representação de várias formas de fanatismo, até a temas mais profundos, entre os quais a humanização controversa (mas crítica) de Hitler, o choque ao pensarmos que tais acontecimentos são verídicos e, o tema mais robusto filosoficamente, uma reflexão sobre a natureza humana.

Quando menciono a ilusão ou o fanatismo presentes de variadas maneiras no filme, a ideologia é, sem sombra de dúvida, a mais fácil de identificar e, portanto, o ponto de partida mais acessível. Não é uma surpresa, nem novidade para ninguém, que a ideologia do partido nazi é, resumindo o mais possível, a encarnação do mal. No entanto, o filme, engenhosamente, é capaz de nos demonstrar, através de situações bizarras, que o mal é um poço sem fim, conseguindo surpreender-nos até com a crueldade nazi. Para pôr em perspetiva, é o equivalente a alguém ficar surpreendido ao ver um ponto num jogo da NBA. Um exemplo notável deste fenómeno trata-se de quando Hitler, confrontado com a iminente queda da cidade de Berlim, se recusa a render-se e ordena que os civis (incluindo mulheres e crianças) defendam a cidade até ao último homem, justificando que não só é o seu dever enquanto cidadãos, assim como é o mínimo que podem fazer como forma de agradecimento ao Führer por ter lutado e engrandecido a pátria ao longo dos anos. Como se não bastasse, o nível de fanatismo e falta de autoconsciência é tanto que Joseph Goebbels (ministro da propaganda e braço direito de Hitler) afirma que isto é a forma justa de o povo alemão pagar por ter eleito o Partido. Contudo, a situação mais perturbante e chocante, no que diz respeito ao fanatismo, é o facto de a mulher de Goebbels recusar que os seus filhos cresçam num mundo que não se reja no nacional-socialismo, resultando no envenenamento dos seus seis filhos (todos crianças).

A ilusão individual a que me refiro trata-se, obviamente, da negação da derrota por parte de Adolf Hitler. Mesmo com Berlim cercada a oeste pelos Aliados e a leste pelos soviéticos, Hitler ainda sonha com um contra-ataque impossível, que iria esmagar os soviéticos e mudar o rumo da guerra, o que, evidentemente, realça o seu estado alienado e de ilusão nos seus últimos dias. Do ponto de vista coletivo, o fanatismo passa pelo facto de os oficiais nazis, na sua grande maioria, ainda seguirem cegamente as ordens irracionais e irresponsáveis de Hitler, mesmo no estado de delírio evidente em que este se encontrava, provando a teoria de que o Führer era realmente visto como um ser superior e até mesmo divino, o exponencial da raça ariana… Acho que não preciso de explicar em que medida é que tal se trata de fanatismo. Considero que a cena em que um oficial alemão, já após o suicídio de Hitler, mostra-se disposto a matar um colega para o impedir de negociar a paz, pois Hitler nunca o teria permitido, demonstra na perfeição aquilo a que me refiro.

Desviando-me agora de aspetos mais óbvios e sensíveis ao olho nu, entendo que a tentativa de humanização de Hitler neste filme, de certa forma algo controversa, tem um significado irónico e crítico por detrás. Esta ousada humanização é realizada a dois níveis: o estado físico degradante de Hitler, evidenciado pelas dificuldades motoras da sua mão esquerda, pela sua postura recolhida e frágil, e pela sua face visivelmente desgastada e envelhecida (sobretudo tendo em conta que este celebra apenas o seu quinquagésimo sexto aniversário). Contudo, a abordagem psicológica é substancialmente mais interessante e cativante. Nos seus últimos dias, o líder supremo de um suposto Reich invencível de mil anos é uma figura desolada, que se sente traído e abandonado por todos aqueles em quem confiava e vê a sua visão de um mundo melhor e perfeito desmoronar-se lentamente à sua frente. O papel incrível de Bruno Ganz faz-nos pensar que estamos a ver um idoso debilitado a lentamente aceitar o seu final trágico, o que, por uma milésima de segundo, remete-nos para um sentimento impensável e francamente proibido neste contexto: pena… até nos eventualmente lembrarmos de que este homem foi responsável pelo extermínio de milhões de vidas inocentes e que a sua visão de um mundo perfeito não difere muito do purgatório. Não obstante, basta esta fração de milissegundo para comprovar que esta humanização, de facto, tem impacto e é bem elaborada. Todavia, a questão mantém-se: por que tentar humanizar uma das figuras mais maléficas da nossa história? Ora, ao analisarmos o contexto histórico, a resposta é fácil — como referi anteriormente, Hitler era visto como uma figura sobre-humana, fruto da propaganda liderada por Goebbels; por isso, nada melhor do que o apresentar como alguém tão frágil como qualquer ser humano, mas corrompido como nenhum outro. Por outras palavras, expor o homem por detrás do mito.

Gostaria também de destacar o facto de o filme começar e acabar com excertos de entrevistas a Traudl Junge, secretária de Hitler durante os últimos anos do Reich, que serviu como testemunha principal do filme, na medida em que relatou grande parte dos acontecimentos. Esta decisão é uma forma de o realizador nos lembrar que não estamos a assistir a uma realidade distante e remota da nossa, mas que as atrocidades que vamos ou acabamos de ver foram testemunhadas por seres humanos ordinários como nós. Falo apenas por mim, mas, a meu ver, é a cereja no topo do bolo no que diz respeito ao choque que o filme nos provoca. Acho particularmente interessante o conteúdo da entrevista que, de certa forma, está conectado ao meu próximo ponto. À semelhança de tantos outros alemães da sua geração, Traudl Junge culpa-se pela sua ingenuidade durante o período das atrocidades dos nazis. Mesmo que esta não tivesse noção do horror que estava a ser feito, sente que a sua juventude e ignorância não são o suficiente para justificar a ausência de ação. O trauma que estas pessoas carregam é, de facto, algo inimaginável, que põe em perspetiva muitos dos nossos problemas. O único ponto positivo que pode ser retirado de tudo isto, e a forma de nos certificarmos de que o trauma desta geração não foi em vão, é garantir que tal horror nunca mais se repita na nossa história.

Para concluir, julgo que o filme também nos convida, indiretamente, a uma reflexão deveras perspicaz e importante sobre como tais acontecimentos podem influenciar os dias de hoje. Realmente, nenhum ser humano nasce intrinsecamente mau; logo, qual o momento em que tais pessoas deram o salto para o fanatismo? Certamente não foi do dia para a noite. Terá sido a sede de poder? Ou seja, os oficiais, concordando ou não com as ideias de Hitler, se as seguissem, mantinham os seus privilégios. O contexto da época também nos oferece algumas respostas. De facto, desde o fim da Primeira Guerra Mundial que existia um rancor contra os judeus na Alemanha; isso, misturado com uma quantidade esmagadora de propaganda, pode ter exponenciado o ódio já semeado contra os judeus, persuadindo a população a não estranhar os atos atrozes. Todavia, diria que o principal motor da hegemonia das ideias extremistas e racistas do Terceiro Reich foi a ignorância, comum a muitas outras ditaduras. As pessoas não sabem que algo está errado se não ouvem falar do certo, sobretudo quando as suas condições de vida antes da ditadura eram piores do que atualmente. Não é por acaso que uma das atividades preferidas dos nazis era queimar livros, visto que tal ideologia só poderia ser aceite se não tivesse grau de comparação. Podia continuar a enumerar possíveis razões de um ser humano aderir ou tolerar algo tão macabro, contudo não acredito que haja uma resposta unanimemente correta, o que me leva a uma conclusão paradoxal. Por um lado, é de máxima importância garantir que atrocidades como esta não se possam voltar a repetir, estando atentos ao mundo de hoje e não permitindo extremismos. Por outro, comparar esta época macabra da humanidade com opiniões mais controversas e menos populares que ouvimos nos dias de hoje pode facilmente ser considerado um desrespeito às vítimas desta mancha na nossa história mundial.

Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Francisco Empis.

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