No passado dia 30, estreou o filme Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, um filme sobre três mulheres de três gerações diferentes no Norte de Portugal, depois de ter tido a sua estreia mundial no Festival de Cannes este ano. O Cinema em Portugal teve a oportunidade de contactar os realizadores e entrevistar um dos membros deste duo e conversar sobre a experiência de fazer este filme e o que este representa para ele. Esta entrevista foi conduzida por Jasmim Bettencourt.
De onde surgiu o Légua? Qual o seu contexto?
O filme surge de uma vontade de passarmos mais tempo neste lugar, onde na verdade eu estou, e é o décor principal do filme. É uma casa que tem estado na minha família há várias gerações e à qual eu venho desde que nasci. A Filipa Reis também tem uma relação comigo há vários anos. Ambos partilhamos deste gosto de estar aqui e essa foi a ideia inicial para o projeto: procurar uma desculpa para passarmos mais tempo por cá. Depois passou-se um episódio real na nossa vida que inspirou esta ficção: a senhora que tomava, e sempre tomou, conta desta casa adoeceu e foi alguém que trabalhava com ela e lhe prestava auxílio nas tarefas aqui na casa que a acolheu em sua casa. Foi ao observar esse gesto altruísta que nós percebemos que tínhamos tema para o filme. Portanto, inspirados neste gesto, criámos uma ficção. Só este gesto é que é real, o resto é tudo uma ficção que construímos a partir deste movimento.
Como é que desenvolveram essa ficção a partir dessa realidade?
Para nós também era muito importante retratar o contexto em que esta história se passava e a ideia foi retratar três gerações de mulheres a viver neste contexto. Era importante que fossem três mulheres empoderadas, todas elas capazes de fazer as suas escolhas. Essa dimensão foi trazida para o filme. A Emília que tem a sua passagem neste filme em que, antes de falecer, consegue aquilo que queria, continuar a viver na casa e viver sempre no sítio que mais gosto e sentido lhe deu à vida. A Ana também, pela sua escolha e pelo seu gesto de amizade, acaba por escolher estar na aldeia, neste lugar que é a Légua, porque é alguém que também parecia ter condicionada a sua escolha pelo facto do seu marido ter estado sempre emigrado e esta ser a primeira vez que ele pode contar com a companhia da mulher a trabalhar com ele e deixarem de estar separados. Os filhos também acham que é chegada a hora de emigrar, até porque provavelmente ganha mais dinheiro. Mas ela não acha isso, acha que tem de ajudar a amiga, que sempre a ajudou a vida toda e, portanto, também faz a sua escolha e, ao fazer isso e a acompanhar na sua passagem, e na verdade acaba por se encontrar ou reencontrar com este lugar e ficar por aqui e perceber que é aqui que pertence. E depois há a terceira geração, que é a Mónica, que é alguém que já nasceu com vontade de ir embora e olha para este meio como algo do passado. Ela quer um futuro diferente para a sua vida e quer ir para um grande centro urbano estudar e ter um curso superior para, talvez, um dia também ter uma vida igual à que os donos desta casa têm.

O espaço é muito importante no filme. Tendo uma relação tão pessoal com esse espaço, como foi desenvolvê-lo para o filme?
Para falar disso também tenho de falar do facto de termos rodado o filme em película. Achávamos que isso seria algo que traria um lado mais orgânico e mais evocativo da memória do filme. Isso era uma coisa que nos agradava: a ideia de ser um filme que não imediatamente surge como datado, ou que ao mesmo tempo surge como datado, que aparece como podendo parecer um filme de outra altura, e, portanto, nesse sentido evocar a memória. Nós estamos a tratar da memória e do tempo, ou seja, é um meio, é um suporte analógico que efetivamente tem as suas surpresas e guarda qualquer coisa do tempo de forma muito diferente do digital, essa existência física da película. E para nós isso fazia sentido, porque o filme é sobre uma progressão de uma doença, é sobre o ciclo das estações do ano e o ciclo da própria vida, é sobre uma Ana que renasce quando uma Emília morre, um ritual de passagem da Mónica quando está numa festa transe e que finalmente atinge a idade adulta e passa-se no exato momento em que a Emília passa para o lado de lá. Tudo isso chamava por filmarmos em película, e ao fazer isso fizemos imensas preparações para que isso acontecesse, porque na verdade isso obriga um certo esforço técnico, e obviamente a quantidade de película é limitada. Para nós que viemos do documentário e estamos muito habituados a montar um dispositivo e ver o que acontece nesse dispositivo, aqui tratou-se de fazer exatamente o contrário: foram feitos ensaios, foram feitas preparações, preparámos determinadas sequências mais problemáticas que foram filmadas em digital e assim já eram montadas com mais certeza quando fossemos para a película. Eu já estou muito habituado a este espaço, mas nem eu nem a Filipa tínhamos filmado aqui nada, portanto também fomos percebendo que a história se desenrolava mais ou menos nas mesmas divisões da casa. Há um certo estar e uma maneira de estar em determinadas divisões, que são consideradas as divisões possíveis, e outras que são só presenças fugazes e momentâneas que tratam só de manter a casa e ir limpando, fazendo a cama e preparando a casa para os senhores. Mas disso tudo se transforma e a casa vai sendo invadida por uma outra forma de estar, a partir do momento em que a Emília adoece e a cama não consegue passar para além da porta principal e não atravessa os corredores e fica uma “nave espacial” aterrada numa sala encapsulada noutro tempo. Tudo isso faz com que elas vão mudando e utilizando objetos que não são frequentes de serem usados anteriormente, por exemplo os serviços de chá. Elas vão ocupando a casa e transformando-a. Esses gestos todos do quotidiano que vai envolvendo ou invadindo esta casa-museu foi algo que para nós também foi sendo, não só consciente à medida que íamos escrevendo o filme e brincando com isso, como efetivamente, ao ter de filmar duas e três vezes os mesmos espaços, era importante não o fazer da mesma maneira. As cenas pediam outras coisas e também não queríamos repetir os enquadramentos – na verdade, fazemo-lo muito poucas vezes, e uma das vezes é feita no exterior da casa e é exatamente para exacerbar a potência da natureza e a mudança do espaço.
Houve algum contratempo em filmar nesse espaço?
Sim. Uma das características desta casa é uma fachada virada para a estrada, o que significava que aí não havia hipótese de montar um set-up de luz e, portanto, houve que pensar nessa dificuldade que seria fazer luz para um lado da casa que tem estrada e carros a passar e não podíamos cortar a estrada – tirando um ou dois momentos em que isso terá acontecido. Também o facto de a casa no geral ser toda num primeiro andar. A casa por baixo tem o que se chama aqui no Norte de “lojas”, de arrumação e que antigamente até era onde se guardavam os animais, que ajudavam a aquecer a casa. E este andar de cima é um andar onde a casa efetivamente corre todas as divisões, mas não deixa de ser um primeiro andar, e, portanto, às vezes era difícil contar com essa iluminação vinda de fora ou reforço de iluminação natural, e isso foi um desafio.
Sendo as personagens, de uma certa forma, baseadas em pessoas reais, como foi encontrar atrizes para interpretar estas personagens?
Nós vimos do documentário e estávamos habituados a trabalhar com atores não-profissionais e achávamos que esses atores traziam uma verdade qualquer que não era muito possível conseguir com atores profissionais e a Carla Maciel mostrou-nos exatamente o contrário. Nós, a dada altura, percebemos que a personagem da Ana teria de ter uma elasticidade qualquer que nós não encontrávamos em atores não-profissionais. A Emília conseguimos encontrar uma senhora muito generosa que conseguiu dar corpo e vida a esta personagem, que é a Fátima Soares. No caso da Carla, nós percebemos que tinha de ser uma atriz profissional, fizemos castings e encontrámo-la, gostámos muito da sua energia e história pessoal – ela é alguém que também tomou conta da mãe – e, portanto, resolvemos trabalhar com ela e foi um enorme prazer contar com o profissionalismo da Carla. E, depois, também vimos com prazer o surgir desta relação entre as duas. Nós continuámos a trabalhar com atores não-profissionais e com atores profissionais. A Vitória Nogueira da Silva, embora não exerça, também é uma atriz profissional. O Paulo Calatré também é um ator sobejamente conhecido. Houve o envolvimento de algumas pessoas aqui da terra, a fazerem figuração e pequenos papéis. E houve a presença do nosso querido Manuel Mozos, que é um amigo pessoal, e que está exatamente entre o ator profissional e o ator não-profissional.

A partir das pessoas reais, como desenvolveram as personagens?
Nós, a partir das pessoas reais, agarrámo-nos sobretudo a este gesto. Ou seja, as pessoas reais não são assim tão parecidas com as personagens que nós desenhámos. Começámos a desenhar à vontade daquilo que queríamos que fossem três mulheres empoderadas que contavam a sua própria história, decidiam o que fazer, como fazer e quando fazer e, alimentando-nos desta relação entre esta senhora mais velha e esta senhora mais nova, depois era relativamente mais fácil desenhar as outras personagens. Havia também a ideia de que os donos estariam ausentes, era preciso criar esta ideia absurda de cuidar de uma casa para ninguém, mas depois também era preciso que o guião tivesse antagonistas. Lembrámo-nos de uma personagem que pudesse ser antagonista e que aparecesse de repente – a personagem do padre, que é alguém que pertence à família, mas ao mesmo tempo não é propriamente dono da casa, mas cria essa tensão na vida das duas – e depois mais tarde a própria venda da casa, ou seja, criar outra força antagonística e que fizesse com que elas se sentissem novamente ameaçadas.
Um aspeto do filme que me tocou particularmente é a forma como os corpos são filmados, as suas imperfeições, o seu envelhecimento, a sua deterioração. Como é que encaram esta temática?
Isso também fez parte da génese do projeto. O projeto foi escrito por mim, pela Filipa Reis, pelo José Filipe Costa e pela Sara Morais, numa fase inicial que demorou quase 3 anos, e a uma dada altura, também abrimos o guião para a participação de uma guionista brasileira, que foi a Letícia Simões. Isso serviu até para nós nos confrontarmos sobretudo com o quão internacional seria esta história e o quão particular ela é de Portugal e do Norte. Mas, já antes disso, os quatro tínhamos já esta ideia de fazer um filme que trabalhasse o corpo e as estações do ano no corpo e o que é isso do corpo físico que sente e o despertar do próprio corpo. Também esta comparação entre corpos: o corpo muito novo e sensual de uma Mónica, um corpo que revela o trabalho e este lugar que é o corpo da Ana, e um corpo já em decadência e com uma rugosidade quase parecida com a do granito da região. Todas essas texturas foram coisas que começaram a entrar em nós à medida que íamos escrevendo. Fizemos várias temporadas aqui, fomos vivendo as diferentes épocas do ano, fomos percebendo que o filme também trata muito a passagem do tempo. O filme é sobre a ideia de ciclo, e como esse ciclo ocorre com transformações interiores e exteriores. Para nós era importante que isso estivesse presente e, portanto, desde o início pensámos filmar texturas, a natureza, a pele.
Como é esse processo de criação em conjunto?
Até à data, foi sempre uma coisa que aconteceu naturalmente e nós fomos deixando acontecer e neste filme quisemos contrariar um bocadinho. Nós temos tendência a prestar atenção a umas coisas e não a outras. A minha atenção ia num determinado sentido, e a da Filipa noutro, que não era exatamente o mesmo que o meu. Ela ficava muitas vezes mais atenta ao lado da continuação da história ou ao trabalho próximo com os atores, e eu ficava muito mais atento aos quadros e com a fotografia. Neste filme quisemos baralhar um bocado as coisas e combinámos que faríamos as duas coisas juntos. Estaríamos sempre os dois com os atores, na câmara e a fazer os enquadramentos e demos algumas cabeças ao Vasco Viana, o nosso diretor de fotografia.
LÉGUA – Trailer (nos cinemas a 29 de Junho) from uma pedra no sapato on Vimeo.