Nos finais de 1963 estreava o filme Os Verdes Anos. Realizada por Paulo Rocha, tendo como produtor António da Cunha Teles e a icónica banda sonora de Carlos Paredes, a obra ficou para a História como lugar-comum do Novo Cinema português. Retrata o rumar das populações rurais à Cidade Grande e as frustrações que podem advir desse processo. Numa altura em que muitos dos jovens da nossa cidade partem em busca de um futuro diferente, deixando para trás um vazio de gente, tem toda a pertinência recordar Os Verdes Anos.
Júlio (Rui Gomes) é um jovem provinciano que chega a Lisboa escudado da promessa de um trabalho como sapateiro, arranjado pelo seu tio. Deambulando pelas ruas da cidade, acaba por ficar preso no hall de um prédio, onde conhece Ilda (Isabel Ruth), uma empregada doméstica. Estão, então, desenhados os contornos para um romance de desfecho trágico.
O filme espelha os condicionantes do Portugal da década de 60. Numa época de êxodo rural e emigração, nem sempre legal, potenciados pelas más condições de vida no interior e pelo fantasma da incorporação militar. O protagonista crê estar numa terra de liberdades, mas depressa constata estar sujeito à tirania de sempre, desta vez pelo seu tio e por uma sociedade ao mesmo tempo repressiva e repreendida. A recusa em casar-se de Ilda, uma mulher emancipada, é o ponto culminante da sua inadequação à vida na capital. Resta-lhe a solidão.
Exímio documento testemunho da Lisboa dos anos 60, está repleto de referências subtis da adaptação à vida urbana que eu próprio, e talvez muitos jovens que se mudam para uma cidade maior, senti. Numa cena, Júlio tem dificuldades em abrir a porta de um prédio por não compreender o mecanismo moderno da fechadura; noutra, a câmara eleva-se no horizonte de prédios como que a indicar a contemplação do protagonista, não habituado a tamanhas construções. A dicotomia cidade-campo é, ainda, belamente representada pela fotografia que tira partido de uma Lisboa crescente, em que as Avenidas Novas estão a consumir cada vez mais território rural.
Inserido no movimento do Novo Cinema, rompe com a narrativa predileta do regime de Salazar. Colhe influências da Nouvelle Vague francesa e do neorrealismo italiano, ou seja, explora temas de um quotidiano social repressivo, procurando dar luz às histórias e problemas das gentes simples. A desigualdade social é representada através arquitetura. Júlio trabalha numa cave, indicador de ocupar as posições mais rasas da pirâmide social; já Ilda num prédio, num andar acima do chão, símbolo do seu estatuto mais remediado. À porta da Faculdade de Letras, esta sugere-lhe que vá estudar, mas em tempos em que apenas uma em cada 100 pessoas possuía formação superior, Júlio está mais inclinado a emigrar.
Muito do abordado no filme ressoou em mim: a crença de que para obter uma vida melhor é necessário deixar a terra onde nascemos, seja para um centro urbano ou mesmo para outro país. Por cá, ruas que aos sábados de manhã registavam uma azáfama contagiante, atualmente contam moscas os estabelecimentos comerciais que não aqueles de restauração. A bola de neve está lançada: o nosso distrito registou uma das taxas de natalidade mais baixas do país. Menos gente, menos mercado, menos emprego. Cabe ao poder político combater esta tendência. No entanto, menor população também representa menos deputados na Assembleia da República, ou seja, menos relevância política, menos votos advindos de obras e outras medidas públicas. Assim sendo, terá de ser cada cidadão a fazer pela sua terra, resolução difícil e de empreendimento pouco óbvio.
Pessoalmente, sempre quis explorar outras paragens. A ideia de passar toda a vida num mesmo local, deixando as infinitas páginas do livro que é o mundo por ler, assombra-me. Fui muito feliz quando cheguei a Lisboa. Não senti a inadequação de Júlio: graças à globalização, à internet, quase todos os lugares se orientam pelo mesmo farol cultural. Também não senti a solidão do protagonista, em virtude dos bons amigos que fiz. Mas não será assim para todos e a escolha de deixar a nossa terra deve ser, isso mesmo, uma escolha – não uma imposição.
Para os que vão, o tio de Júlio deixa um conselho trocista: “Ponho o olhar lá para os prédios, o bairro da Ilda, e penso no que aquela gente toda paga para estar lá dentro. Sai-lhes mais caro o dormir que o comer.” Para os que ficam, mantém-se o receio do esgotamento d’Os Verdes Anos.
Artigo escrito por Rodrigo Fialho. Uma iniciativa Associação Coletivo Artístico 7350.