Entre 12 e 18 de setembro, o MotelX assombrou Lisboa com cinema de terror com origem em vários pontos do mundo, mostrando a diversidade presente neste género. 7 filmes estiveram em competição de Melhor Longa Europeia. Um deles foi Raging Grace, uma produção britânica, vencedora do Narrative Grand Jury Award no festival estadunidense SXSW, realizada por Paris Zarcilla que segue Joy, uma imigrante filipina que trabalha como mulher-a-dias para várias famílias britânicas ricas para conseguir dar uma vida melhor à sua filha, Grace. Um dia, aceita trabalhar numa velha mansão a cuidar de um aristocrata idoso. No entanto, este não é simplesmente mais um trabalho, e, rapidamente, Joy apercebe-se que há algo de sinistro escondido nesta mansão. O Cinema em Portugal esteve presente no MotelX e teve a oportunidade de entrevistar o realizador deste filme de terror social fascinante, Paris Zarcilla.
Esta entrevista foi conduzida por Jasmim Bettencourt.
Na apresentação do filme, disseste que fazer este filme foi um processo penoso para ti. O que te trouxe a esta história?
2020 foi um ano muito tumultuoso, e para mim – e para toda a gente – foi um tempo de introspeção. Durante esse tempo, apercebi-me que estava a ter uma crise de identidade. No fundo, não sabia quem era e porque é que estava a fazer filmes – o que é que isso significava? Não estava a operar de um lugar autêntico, e apercebi-me que era porque os meus pais, sendo imigrantes, tinham me ensinado a assimilar, a não gritar, a não ocupar espaço, a não chamar a atenção, apenas ter boas notas e caminhar em frente, despercebido. E eu tomei essas lições a peito. Apenas queria agradar. Mas o que isso me deu foi uma falta de personalidade. Senti que tudo o que eu estava à procura era aprovação branca. Quando me apercebi disso, senti uma vergonha enorme. Vergonha de que, durante trinta anos, eu tinha rejeitado quem sou, a minha língua materna, e a minha cultura. E essa vergonha é poderosa. Isto estava a acontecer enquanto havia um aumento de ódio contra pessoas asiáticas no Reino Unido e nos EUA. Essa dor era amplificada pelo nosso governo, que dizia coisas horríveis sobre a comunidade imigrante. Sobre o tipo de imigrantes que estava a morrer nas linhas da frente a proteger o povo britânico. Esses imigrantes eram filipinos, trabalham no Sistema Nacional de Saúde britânico a cuidar do povo britânico. E estas pessoas são como a minha mãe, os meus tios, e estavam a ser espezinhados, rejeitados pelo governo, e isso enfureceu-me. Encheu-me de raiva. E essa raiva era tão perigosa que eu pensei que, se eu não lidasse com isso, iria destruir-me. E, portanto, coloquei essa raiva no lugar mais seguro que eu conheço, que é na escrita. Foi isso o início de Raging Grace.

O tema da raiva é muito interessante. Por exemplo, quando uma comunidade oprimida luta pelos seus direitos, quando exprime raiva, as pessoas agem como se isso tirasse valor à luta, como se a raiva não fosse uma emoção válida. Como vês isto?
Para muitas pessoas asiáticas, a raiva é algo que nos é ensinado a ser escondido e a não ser expressado em público. Traz vergonha, arruína a reputação. Mas não poder expressar isso é profundamente doentio. Quando expressamos estas emoções, somos vistos como sendo difíceis. Quando, finalmente, decidimos externalizar a raiva, frustração e fúria somos vistos como sendo hostis ou ingratos. Sinto que muitas das nossas experiências não são validadas porque estão tão fora do que é o status quo. A raiva pode ser incrivelmente libertadora, mas também pode ser corrosiva. Essa raiva que sentimos, erode-nos, tira-nos energia, cansa-nos. Altera a nossa perspetiva do mundo. E, enquanto acredito que temos de dar a nós próprios a permissão de estar furiosos, não podemos viver aí sempre. Temos de ir para além da raiva. Temos de ir para além do trauma. De outro modo, vivemos sem expressar as alegrias verdadeiras da nossa vida, sem conseguir assimilar essas coisas. É por isso que o título do filme, Raging Grace, é tão importante para colocar isso no mundo, porque incorpora o que sinto que devemos fazer. Temos de usar essa raiva como combustível para expressar a confusão, a complexidade e a nuance do que sentimos. Mas temos de fazer isso também com eloquência e de modo que os outros nos compreendam. Eu mencionei no Q&A como muitos imigrantes de primeira geração que vêm para cá e experienciam micro e macro agressões. São, muitas vezes, a geração que não tem a capacidade de articular o seu desconforto sobre este lugar estrangeiro em que eles se encontram e os preconceitos que encontram. Torna-se apenas uma questão de sobrevivência. Mas quem vem a seguir pode contar as suas histórias, pode carregar e dar nomes a essa raiva que é geracional.
E também ocupar espaços para si.
Isso é algo muito importante. Muitas vezes, o espaço é visto como algo que tem de ser merecido e, mesmo quando merecemos, é inseguro. Mas, a nossa própria existência num espaço que decidimos ocupar – isso é, em si próprio, um protesto, isso é uma declaração de existência. Não temos que provar que existimos. Nós somos, apenas somos. Nós existimos. E acho que nos esquecemos de que podemos apenas existir, sem trauma, sem a necessidade de gritar que chegámos. Mas é isso que tantos imigrantes, e filhos e filhas de imigrantes, experienciam. E é exaustante. A nossa existência é negada tantas vezes e de tantas formas que se sente como algo invisível. É expresso na linguagem que usamos. Especialmente a comunidade filipina, são um povo colonizado, que fala a linguagem de colonizadores, que herdou um mundo dos colonizadores. A complexidade está no facto de que beneficiamos e lucramos ao viver nesta sociedade colonizada. E, portanto, o desafio é incrivelmente difícil – a confrontação com essas complexidades. Mas são filmes como Raging Grace, espero eu, que permitam ao público ver as nuances e que deem voz àqueles que não a tenham.

Raging Grace foi então a forma que arranjaste para direcionar essa raiva para algo que pudesse chegar às pessoas e causar alguma mudança.
A raiva pode ser reativa, mas também é uma resposta. Pelo menos para mim, é o que me levou a desafiar as lições dos meus pais. Levou-me a falar e a confrontar o colonialismo. Levou-me a confrontar poder branco velho e novo. O que é aterrador para mim. Mas a raiva ajuda a ultrapassar o terror. Portanto, é importante saber como usá-la.
Porquê transformar essa raiva num filme de terror? Porque é que é esse género que expressa essa raiva?
O terror é apenas uma face do filme – uma muito importante. Mas foi algo muito natural para que fosse esse género a incorporar essas questões pois as experiências de imigrantes são muitas vezes aterradoras. Mas quero continuar a expressar que não é só sobre o trauma. Existe humor no absurdo. Não é só um filme que exprime dor. Existe também comédia. Existe também uma leveza que vem da cultura filipina. Existe também resistência. Incorpora também thriller. É uma forma multifacetada de encarar o género porque sinto que é isso que reflete a vida real. É fácil vender este filme como um filme de terror, de uma perspetiva capitalista. Mas, na verdade, é uma reflecção de experiências reais e verdadeiras. Algumas pessoas podem achar que o filme é absurdo, demasiado teatral, sem nuance. Mas, sim, é absurdo. É absurdo que tantos imigrantes tenham de enfrentar este ridículo. É teatral porque, muitas vezes, o que imigrantes ouvem de indivíduos racistas parece saído de uma caricatura. E é impressionante porque muitas vezes nem é tão teatral. É o quão insidioso é o racismo por de trás do sorriso, o racismo por de trás do elogio, os preconceitos invisíveis presentes no emprego e na habitação que impedem a nossa progressão. Vivemos numa sociedade que não foi feita para o nosso sucesso.
Existem muitos elementos neste filme que sublinham a cultura filipina. Um que achei particularmente interessante é a banda-sonora. Como foi o processo da sua produção?
Eu amo a banda-sonora do filme. Eu amo o Jon Clarke, que é o compositor e o desenhador de som do filme. Eu dei-lhe uma tarefa impossível, que foi criar algo que fosse unicamente filipino, mas que, de alguma forma, fosse reconhecível como uma peça de música ocidental. E isso levou-o a descobrir sons unicamente filipinos que vêm da paisagem do filme. Por exemplo, ele usou o tinikling, que é uma dança das Filipinas em que dois a cinco indivíduos dançam entre dois paus de bambu, que batem um no outro, criando um ritmo. Esse som tornou-se na pulsação do filme. Também é representativo de Joy e Grace (as protagonistas do filme). Ele usou um instrumento chamado de kuling tan, que são umas taças de latão que, quando se bate nelas, criam um som cujas notas não existem em nenhuma escala musical ocidental. E a parte brilhante disto é que este instrumento representa Joy e Grace, tentando encaixar num mundo ocidental, mas sem consegui-lo. O que Jon fez foi incrível. Ele encontrou uma forma de juntar o kuling tan e instrumentos ocidentais, como o violino e o violoncelo, e colocá-los em harmonia. No entanto, também conseguiu usar a dissonância entre os instrumentos. Usámos também um coro no filme, que se chama Coro Haraya. É constituído por enfermeiros e médicos filipinos do Sistema Nacional de Saúde britânico. As suas vozes preenchem o filme com uma autenticidade e rebelião que é profundamente importante para este. O Jon gravou os nossos gritos, a nossa raiva e frustração, e transformou isso para dentro do filme. Portanto, sempre que se houve algum momento de tensão crescente, somos nós, as nossas vozes. Portanto, o nosso ADN está tecido em cada parte do filme.

Este filme tem algo de único, especificamente no contexto do cinema britânico. O que significa este filme para ti na forma como ocupa um espaço dentro deste cinema nacional?
O facto de Raging Grace ser o primeiro filme britânico-filipino na História do cinema britânico já, por si só, ocupa um espaço dentro da nossa indústria. Eu acho que a indústria britânica tem dificuldade a incorporar isso porque é um tipo de história que desconhecem. Não têm conhecimento sobre este tipo específico de histórias de imigrantes que acontecem por trás de paredes de tijolo e fachadas de famílias felizes. É, de uma forma, pioneiro porque especificamente desafia o colonialismo britânico, e fá-lo num contexto moderno. Temos tantos cineastas britânicos de cinema de género com imenso talento no RU, mas não são celebrados como os cineastas de dramas independentes. O que é muito estranho porque temos uma história de cinema de terror rica, para não falar nos filmes da altura dos kitchen sink dramas, da Nova Vaga Britânica, que desafiavam o sistema de classes britânico. Um filme que me influenciou foi O Criado, com o Dirk Bogarde. O que eu quero como realizador e argumentista é que o meu filme seja reconhecido como um filme britânico. Apesar de também ser especificamente filipino, isto é algo que acontece na sociedade britânica, e os filhos e filhas destes imigrantes são britânicos. Eu acho que o desafio da nossa sociedade é a sua forma limitada de encarar estes problemas tão complexos sobre raça, preconceito e classe. Não nos permitimos a nós próprios um espaço para discutir estas questões publicamente. E isso é porque a comunicação social é controlada por uma geração arcaica. Alguns deles ainda acreditam no colonialismo e no poder imperialista do RU. Mas espero que este filme seja um de muitos que continua a expandir a diversidade do cinema britânico.
Mencionaste O Criado. Quais foram outras influências na produção deste filme?
Uma escolha óbvia de realizador, mas não tanto de filme, é o Bong Joon-ho. Sou um grande fã dele, mas não por um filme popular dele. É por uma curta-metragem que ele fez, chamada Shaking Tokyo. É uma obra-prima de cinema que expressa a economia de fazer filmes e a economia da linguagem cinemática de uma forma bela. Fanny e Alexander é outra influência. Matilda, que é um filme infantil, mas que é aterrador. É uma masterclass de como construir tensão. E claro, O Criado e também Roma, que é um filme importante sobre uma perspetiva que raramente vemos – uma personagem que vemos a viver na intimidade de uma família, uma perspetiva interessante.
Qual foi o maior desafio na produção deste filme?
Isto é uma resposta grande: tudo. Foi desafiante escrever algo que 1) te dá raiva 2) te traz uma dor extraordinária 3) incorporar personagens que dizem coisas tão dolorosas e depois ouvir essas coisas no set. É doloroso ver cenas pelas quais sei que a minha mãe passou e imaginar como foi estar numa casa enorme e ser falada e agredida pelo seu empregador. Foi um grande desafio. Fizemos o filme em 20 dias com um orçamento baixíssimo. Filmámos num local no qual tivemos de viver durante quatro semanas. Portanto, foi muito claustrofóbico. Acho que o maior desafio tem sido lidar com o medo de levar este filme ao mundo e ver como o público reage. Ainda estou a lidar com isso. Tem havido reações profundas e positivas, mas é traumatizante. Sinto que estou a viver uma forma de stress pós-traumático. Mas é isso que é desafiar a casa do mestre.

Como tem sido esse desafio à casa do mestre e mostrar isso ao mundo?
Sempre que uma voz crítica decide ter o Poder como alvo, é feita uma decisão intencional de desafiar a casa do mestre. Quem faz isso fá-lo apesar do que isso poderá trazer de consequências. E, para mim, isso é coragem. E espero que Raging Grace seja a primeira chama do fogo que irá arder a casa do mestre.
Qual é o impacto que esperas que este filme tenha?
Antes de mais, quero que o público seja entretido. É essa a melhor forma de fazer as pessoas entender temas difíceis. Quero que as pessoas saiam da sala a sentirem-se vistas e libertas. Quero que isto seja um espetáculo catártico. Quero que exprima algo que não têm conseguido expressar ao mundo. Só posso desejar que tenha algum impacto na indústria, no sentido em que prova que vozes diversas são válidas e trazem interesse e entretenimento. Mas, às vezes desejo que não tivesse de fazer um filme assim. É uma grande responsabilidade e às vezes desejo poder apenas fazer uma comédia romântica. E talvez um dia o faça. Mas, enquanto existirem estas questões, continuarei a expressar a minha raiva graciosamente – ou, pelo menos, o quão graciosamente conseguir.
Já tens novos projetos?
Sim. Raging Grace é um de três filmes, uma “trilogia da fúria”. O segundo chama-se Domestic. É, novamente, um género misto, mas no fundo é um filme de assalto improvável sobre um jovem casal filipino que vive e trabalha em Londres nos anos 90. Enquanto trabalham num café, planeiam missões de resgate para ajudar trabalhadoras domésticas a fugir dos seus empregadores abusivos. E é baseado numa história verídica. Mais uma vez, vai ser um thriller, um drama, vai haver terror, mas, no fundo, também vai haver humor, e mal posso esperar para poder mostrar ao mundo. Estou a 10 páginas de o acabar.
Para acabar, qual é o teu filme de terror favorito?
Há muitos. Mas vou fazer uma escolha invulgar. Não sei se é o meu favorito, mas assustou-me muito quando era mais novo. Acho que é o Halloween III. É o sobre um fazedor de máscaras. Foi a primeira vez que a minha mãe me deixou ver um filme de terror, mas ela viu-o comigo. E, nessa noite, não conseguimos dormir. Tivemos os dois pesadelos terríveis. Estranhamente, acho que gostei desse filme pela forma como me aproximou da minha mãe.

