Jean-Luc Godard a puxar Raoul Coutard na filmagem de "À bout de souffle". Fotografia: Raymond Cauchetier

Serão os filmes apenas dos(as) realizadores(as)?

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Os filmes são feitos apenas por realizadores(as)? As imagens nos filmes e séries têm aquele impacto apenas por causa da realização? Os décors, a qualidade e intenções do som e da edição, foi a realização que teve a ideia de tudo? Os atores também interpretam daquela maneira apenas porque foram mandados?

Dia 12 de Outubro Benoit de L’Homme, um diretor de fotografia francês com carreira internacional (O Rapaz do Pijama às Riscas, A Teoria de Tudo), partilhou no seu Instagram um texto que diz o seguinte: “A nova vaga francesa criou a ilusão de que um filme era o resultado do (trabalho de apenas de uma pessoa – esta parte ele riscou) da criação artística de uma pessoa, continuava a ser o caso quando comecei a filmar enquanto diretor de fotografia (cinegrafista) no início dos anos 90 em França. Durante os primeiros 10 anos da minha carreira nunca fui convidado a um festival do qual um filme que fotografei tenha sido selecionado, o meu nome nunca foi mencionado por críticos de cinema em França, todos os colaboradores artísticos de um filme (com a excepção da composição de música original) eram invisíveis. Os realizadores evitavam cuidadosamente mencionar os nossos nomes quando falavam do aspecto estético (look) do filme. Os realizadores guardavam a ilusão de serem os artistas totais como pintores e escritores. Fiquei surpreso quando comecei a trabalhar na Inglaterra e nos Estados Unidos e ter realizadores e até atores a mencionarem a minha contribuição artística nos filmes”. (fonte: @benoitdelhomme)

O ego de alguns realizadores manteve na sombra os colaboradores que tiveram grande influência na nouvelle vague francesa e no caso da direção de fotografia aqueles que tiveram grande influência no visual dos filmes. Temos por exemplo Néstor Almendros que fez muitos dos filmes de Eric Rohmer. No seu livro “Un homme à la caméra” Almendros fala da sua filosofia na direção de fotografia e como ele utilizava a luz natural como fonte principal da sua iluminação. “ a minha maneira de iluminar e ver a realidade é realista. […] Vou a um local, vejo onde a luz normalmente cai e tento capturá-la tal como está, ou reforço-a, se não for forte o suficiente.” Por isso o aspecto naturalista e impressionista de muitos filmes de Rohmer. Na nouvelle vague o objectivo é justamente filmar com menos equipamento e de maneira mais natural possível, em locais que muitas das vezes eram os alojamentos dos próprios realizadores, e os diretores de fotografia tiveram de se adaptar. Raoul Coutard, diretor de fotografia também muito importante da nouvelle vague (filmes de Jean-Luc Goudard) substituiu os trilhos dos sistemas de travelling e dolly por uma cadeira de rodas e também teve de se submeter à luz natural. “Eu teria preferido fazer a iluminação de Rembrandt em vez das coisas de baixo contraste que fiz em muitos dos meus primeiros filmes. Ao mesmo tempo, fiquei satisfeito com a forma como geria a iluminação, dado o tempo e os meios limitados.” Essa filosofia de luz natural Almendros levou para o estrangeiro quando trabalhou com Terrence Malick em “Days of Heaven,” a equipa técnica americana não gostou muito da ideia de usar apenas luz natural não era hábito em Hollywood, contudo essa ideia refletiu-se na beleza desse filme, embora Haskell Wexler não tenha seguido essa técnica quando continuou a fotografia substituindo Almendros.

Enquanto aspirante realizador e diretor de fotografia sempre defendi o lado autoral da realização porque de facto a realização toma decisões finais sobre todos os aspectos do filme e é uma responsabilidade enorme. Se um filme não for bom, a não ser que os produtores executivos se intrometem na realização, tem grande chance que a culpa seja de facto da realização. Isso, contudo, não significa que a visão da realização não tenha sido veiculada de maneira colaborativa por outros(as) artistas durante o processo. Não é por nada que vemos diretores com um estilo tão único como o Tim Burton, que quando vemos os filmes dele embora tenha linguagens em comum também tenha diferenças na imagem. Quando ele trabalha com um Lubezki, Delbonnel, Wolski ou um Ben Davis, a imagem fica com um aspecto diferente. Não é por nada que também reconhecemos na filmografia de Terrence Malik, Alejandro González Iñárritu e Alfonso Cuarón a assinatura de Emmanuel Lubezki. Nos filmes de Ethan e Joel Cohen a assinatura de Roger Deakins e de Bruno Delbonnel. E ainda nos filmes de Steven Spielberg a assinatura de Janusz Kamiński.

O segundo artigo interessante que partilho aqui é da IndieWire sobre a série “Disclaimer” de Alfonso Cuarón que se encontra na Apple TV, sobre o facto de a série ter dois diretores de fotografia e o porquê. “The Innovative Reason Emmanuel Lubezki and Bruno Delbonnel Share the ‘Disclaimer’ Cinematographer Credit.” (https://www.indiewire.com/features/interviews/disclaimer-alfonso-cuaron-explains-different-n arrative-storylines-1235056391/)

A série retrata a importância da representação e como a narrativa e a forma podem ser ferramentas de manipulação sobre a percepção de algo. Citando o artigo e Cuarón: “… Christiane Amanpour não diz apenas cuidado com a narrativa, ela diz ‘narrativa e forma’,” disse Cuarón. “A forma em muitos casos tem um poder ainda mais profundo porque está a fazer as coisas de uma maneira mais subtil do que os eventos narrativos explícitos.” 

“Cuarón não só cuidadosamente quebrou a história através de reescritas constantes, ele e o colaborador e amigo de longa data do cineasta Emmanuel “Chivo” Lubezki, que veio a bordo cedo como produtor em “Disclaimer,” Levou a questão da criação de diferentes pontos de vista para um nível mais fundamental. Sobre a criação de perspectivas visuais sobre a ação tão diferentes como as personagens e as narrativas. Era sobre como vemos e experimentamos a ação.”

“Foi a ideia de Chivo, em ter uma linguagem mais marcante e diferença entre essas perspectivas e narrativas, trazer um segundo cinegrafista para levar algumas dessas vozes”, explicou Cuarón. “Foi assim que a aproximação de uma voz não influencia a aproximação da outra.”

Embora seja comum que uma série limitada tenha dois cinegrafistas, o trabalho é normalmente dividido por episódios. No caso de “Disclaimer”, Lubezki e Bruno Delbonnel dividiram as suas funções por linha narrativa, mantendo cada ponto de vista em todos os sete episódios nas mãos de um único cinegrafista.”

É interessante ver como um cineasta com uma visão tão singular na qual já tenha até sido o seu próprio diretor de fotografia (com ajuda) no seu filme “Roma” tenha noção de como os seus colaboradores(as) de facto influenciam na sua obra, neste caso de um ponto de visto da forma e da narrativa. Aqui no caso embora a mesma realização (em si bastante versátil a nível de estilo) trabalhe com dois diretores de fotografia para manter o ponto de vista de cada linha narrativa única. É também interessante analisar que a singularidade artística e estética de Cuarón venha dessa colaboração com Lubezki.

Naqueles que pesquisam e sabem sobre técnica e direção de fotografia, sabem que certos diretores de fotografia têm estilos próprios e certos realizadores(as) os contratam por isso. É conhecido o estilo de Roger Deakins, Hoyte Van Hoytema, etc. Contudo estou de acordo com a filosofia de Rui Poças, um dos grande diretores de fotografia português (obras de Miguel Gomes), que defende que enquanto diretor de fotografia evita ter um estilo próprio e tenta sempre fazer algo diferente, algo que não o identifique, até porque o mais importante é servir a narrativa e respeitar a visão da realização e não estar a impor a sua própria visão. Por isso, antes de contratar a direção de fotografia tem de haver entrevistas (tal como com os atores) para ver se a mesma visão sobre o projeto é partilhada com a realização. Certos diretores de fotografia se recusam a fazer “zoom” por exemplo, é preciso saber se a realização aceita essa filosofia, alguns partilham a mesma opinião outros não.

Na minha opinião acho que é importante os(as) diretores de fotografia serem versáteis para que possam de maneira original dar suporte à visão da realização de maneira única, sem se limitarem ou imporem um estilo. Mas ao mesmo tempo é interessante ter alguns que tenham o seu estilo assim como defendem o uso a película e os outros defendam o digital, porque assim esses estilos particulares permitem, no panorama geral, obter resultados distintos. E por muito que se tente evitar um estilo, de maneira inconsciente a sensibilidade artística vem sempre ao de cima nem que seja em pequenos detalhes de maneira orgânica, por isso vemos grandes diretores de fotografia como Darius Khondji que conforme o realizador com quem trabalha (Fincher, Jeunet, irmãos Safdie, Bong Joon-ho, Winding Refn ou Iñárritu), mesmo com estéticas e visões diferentes encontramos detalhes em comum entre elas.

Em outra fonte que envolve também Cuarón, numa entrevista com Gaspar Noé no âmbito de uma projeção de “Gravity”, Noé diz ao longo da conversa que ele co-realizou “Enter The Void com o seu supervisor de efeitos visuais (Geoffrey Niquet), porque ele não sabia como poderia ter feito o filme daquela maneira. Embora seja uma metáfora porque a visão artística é de facto de Noé e notamos isso em todos os seus filmes, é interessante analisar como o supervisor de efeitos visuais teve um impacto muito importante para concretização e realização daquelas cenas de efeitos visuais e especiais. Cuarón menciona também o supervisor de efeitos visuais que o ajudou a concretizar Gravity (Tim Webber), pois ele não saberia também como concretizar as suas ideias e foi inovador na altura. Nota também que Lubezki teve a ideia depois de assistir a um concerto em utilizar LEDs (1.8 milhões) e criaram um “light cube” parecido com, hoje em dia, chamado led volume (desenvolvido mais tarde na série ‘The Mandalorian’), que permitiu “projectar/monitorizar” as imagens criadas em CGI e controlar a iluminação. (https://www.youtube.com/watch?v=hWxURSUjOnc)

E já que falamos sobre efeitos visuais é importante realçar como nestes últimos tempos tem havido uma desvalorização dos efeitos especiais CGI por parte de alguns realizadores, produtores e atores, como se tivessem vergonha da pobre qualidade de efeitos cgi de alguns blockbusters, que na realidade foram apenas resultado do sobre-trabalho e pressão dos estúdios para com os artistas vfx. Essa desvalorização vem na defesa da utilização única de efeitos práticos nos sets e o não recurso a cgi, enquanto muitas das vezes é simplesmente mentira. O supervisor de efeitos visuais português (de carreira internacional) Hugo Guerra criticou essa situação num post de Fede Alvarez sobre Alien Romulus que fala como se houvesse apenas efeitos práticos e os mesmos é que funcionavam para o filme. Mas deixo aqui um texto escrito por um dos artistas visuais de Alien Romulus no reddit: Trabalhei no filme como artista de efeitos visuais e posso atestar o fato de que a maioria das filmagens têm efeitos cgi/vfx. Isto varia de set-extensions, props, duplos digitais e criaturas. Quase todas as imagens dos Xeno (aliens) na sequência do corredor/elevador foram CG por completo ou CG melhorado/ substituído … . Isto não quer dizer que não havia marionetes, havia muitos e mesmo quando eles não eram usados ou substituídos eram grandes referências.

“Quando elogiam os efeitos práticos incríveis, por favor não se esqueçam de nós dos VFX que trabalhamos incansavelmente neste e muitos outros filmes, a indústria está a lutar e muitos artistas estão sem trabalho. Os estúdios estão a exagerar em efeitos práticos e a não revelar os artistas VFX, estes mesmos estão a enfrentar duras críticas sobre o “mau CG” quando os projetos foram apressados e de baixo orçamento.”

Houve também um post de Instagram à algum tempo que mostrou Tom Cruise a dizer que tudo em “Top Gun Maverick” foi feito “em frente da câmera sem efeitos visuais”, enquanto víamos por baixo do diálogo dele o “making of” dos efeitos visuais dos jatos e os backgrounds a serem modificados digitalmente. É verdade que muitos filmes têm procurado fazer tudo da maneira mais “in-camera” e com mais efeitos práticos quanto o possível, mas não significa que também não haja efeitos gerados por computador e artistas de vfx que são simplesmente invisíveis e isso só demonstra a eficácia dos mesmos.

Não sei como é o caso de Portugal em relação à valorização dos colaboradores artísticos, deixo esses mesmos se manifestarem sobre isso, apenas sei que Portugal foi muito influenciado pela nouvelle vague francesa e que a ideia do cinema de autor está bem embutida na cinematografia portuguesa, não significa que os autores defendem que o resultado do filme seja único fruto do trabalho dos mesmo, mas é preciso salientar que para além de grandes realizadores e realizadoras em Portugal também temos grandes diretores(as) de fotografia e colaboradores(as) de várias áreas. Além de Rui Poças que já mencionei, Luís Branquinho, Leonor Teles, André Szankowski, João Ribeiro, Pedro Cardeira, Hugo Azevedo, Adolpho Veloso, Tony Costa, João Lança Morais, Andreia Santos entre outros(as). E também é importante falar que dentro da direção de fotografia de um filme existe outros(as) colaboradores(as) que têm uma influência muito importante para o aspecto final da imagem e até alguns diretores de fotografia não se lembram de mencionar, que são os(as) coloristas, que desde o aparecimento das câmeras digitais tornaram-se fundamentais para a finalização da imagem/video, trabalham juntamente com a realização e com a direção de fotografia para fazer os ajustes finais de uma maneira que não se podia fazer no mundo da película. Em Portugal temos grandes coloristas como a Jennifer Mendes (Glória, Variações, Pátio das Cantigas), Marco Amaral (Rabo de Peixe, Emília), Andreia Bertini (Mal Viver, Causa Própria), entre outros (as) que também têm grande influência na imagem dos filmes portugueses e estrangeiros.

Hoje em dia os colaboradores são mais mencionados, temos o exemplo de uma entrevista de Francis Ford Coppola no âmbito de “Megalopolis” que menciona os seus colaboradores quase como co-realizadores, onde diz que Adam Driver até foi dar opinião na sala de montagem. Acredito que as coisas melhoraram e a França (ou menos na generalidade) não continue a desvalorizar os seus colaboradores. Os críticos começam a mencionar outros colaboradores além da realização, os próprios realizadores(as) nas entregas de prémios e entrevistas, as marcas das câmaras e revistas de associações de direção de fotografia e outras áreas de cada país fazem artigos e entrevistas dedicadas a cada cargo. Na publicação de Benoît de L’Homme que mencionei em cima, Rui Poças respondeu “não mudou muito”, logo acredito que ainda haja trabalho para fazer nesta matéria. No meu caso dos meus projetos independentes em França, os realizadores sempre me mencionaram como colaborador nas pequenas entrevistas, contudo (por uma inocente ingenuidade e não desvalor) mencionam-me como o “operador de câmera”. Operador de câmera e diretor de fotografia são duas coisas completamente diferentes. É preciso também saber realmente o que cada cargo e área em específico faça e tenha de fazer, que reconhecimento requer. Não é porque alguém sabe o que é pouca ou muita profundidade de campo e conheça a diferença entre as focais que seja um(a) diretor(a) de fotografia e não é por alguém fazer o conceito visual do projeto que seja um ou uma diretor(a) de arte. Saber distinguir isso é respeitar o cargo e conhecimento de cada um.

Ainda acham que os filmes só são feitos pelos realizadores?

Texto escrito por Benoît Bruère.

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