Duas visões e duas análises por parte de cinéfilos da nossa equipa, que analisaram o filme Grand Tour do realizador português Miguel Gomes. Esta obra arrecadou o Prémio de Melhor Realização no Festival de Cannes, prestigiando desta forma o trabalho deste realizador, e de toda a equipa deste filme, que uma vez mais deixa a sua marca no Cinema Português e na sua carreira cinematográfica.
Cinema como um mosaico temporal de imagens e som
Embrenhado no calor húmido e sufocante do leste asiático, Edward, diplomata do Império Britânico, espera a sua noiva, Molly, no cais de Rangoon. Num momento de introspecção, ou talvez de delírio, ele decide fugir. Num jogo de gato e rato, os dois embarcam numa viagem por um mosaico de culturas às quais são intrusos, por um mosaico de melancolia, existencialismo e angústia. Misturando imagens, sons, vozes e línguas num caldo cinematográfico, o espectador é gentilmente convidado a mergulhar neste, refletindo sobre a natureza destas imagens e desta história que nos é narrada de forma tão peculiar.
Em Grand Tour, Miguel Gomes desconstrói o próprio tecido do cinema. Imagens filmadas nos diversos países do leste asiático são misturadas por imagens teatrais e artificiais de estúdio. Géneros musicais orientais e ocidentais misturam-se. Cor e preto e branco dissolvem-se entre si. Vozes sem corpo falam em diversas línguas, cada uma contando a sua história, singular e comum ao mesmo tempo. Um mosaico de múltiplas dimensões é construído. O espectador é embalado pelo som e pelas imagens que deslizam a um ritmo melancólico. E no meio deste transe, pode-se encontrar algo inquietante, algo que está no cerne desta obra-prima.
Através desta plasticidade que Grand Tour apresenta, é refletida uma história de dor e violência. Esta história, sobre duas pessoas ocidentais a circular por um meio asiático, contada de outra forma, cairia facilmente num fetichismo datado – algo que está bastante presente ao longo da História do cinema ocidental. No entanto, Miguel Gomes joga precisamente com esta História do cinema, refletindo sobre esta e subvertendo-a. A narrativa é fragmentada tanto visualmente como sonoramente, sendo focado o meio em que estes dois protagonistas se inserem e sendo a sua história contada por vozes que falam as línguas nativas de cada país por onde passam, como se estes lugares se transformassem eles próprios em personagens – conscientes das suas cicatrizes e da sua posição no mundo imperialista.
Desta forma, Grand Tour é elevado a algo particular, algo que nos abala de forma silenciosa, subvertendo o próprio cinema, dialogando com a sua História tal como dialoga com a História do colonialismo europeu e com as cicatrizes escondidas e ainda presentes na atualidade. A narrativa destes dois personagens que são observados, de uma certa forma, também é subvertida, perdendo a sua centralidade na estrutura do filme, tornando-se apenas numa das partes do grande mosaico de histórias, vozes, e imagens que este verdadeiramente é.
Misturando humor e melancolia, Miguel Gomes leva-nos numa viagem eclética, por meio de uma diversidade de imagens. É uma viagem à qual resistência não deve ser dada, deixando-nos levar pelo seu embalo. No entanto, também é uma viagem na qual somos convidados a participar ativamente, refletindo sobre as emoções e pensamentos que esta e as suas imagens e sons suscitam, pois esta viagem também é sobre nós. Grand Tour é o cinema transformado num mosaico onírico, em que tanto a beleza como a crueldade do mundo são reveladas na grande tela, que nos engole e onde mergulhamos, tanto pela nossa própria vontade como contra ela. É um filme – uma experiência – verdadeiramente sublime.
Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.
Por Este Rio Acima
Há diferenças substanciais entre convicção e fé, diria até que estou convicto disso, aliás, diria que consegue ser uma roda gigante operada à mão, mas já lá vamos. A relação espaço-tempo diluída e disforme nesta odisseia asiática conseguem ter o poder de transferir o enredo para um lado inspirado da nuca que se fixa nas sobreposições de imagens, na confusão das cidades, nos mitos e lendas, nas paisagens… Por detrás da incerteza de um homem há mais do que cobardia ou risco, há o ímpeto da viagem e a transformação que se segue em grande tour(menta) [permita-se o trocadilho tosco] para uma busca que é, ao mesmo tempo, imensa e ímpar.
A fé vai além de se ficar a emborcar Singapura Flings num bar de hotel ou de se sossegar na cama de rede de um grande empresário, a fé dá-se como força motriz pouco esclarecida para desafiar o óbvio ou o que parecerá mais mundanal. A mistura satírica dos séculos e a apatia dos ocidentais tem tanto ou mais peso quando no outro prato da balança está um riso mal contido e uma leveza quase desconfortável. Um casamento ou um deslumbramento inebriado por um mundo que se olha com olhos de ver quando a cortina desaba e os olhos cedem à luz?
A fome de mundo seduz mas atropela na senda de um caminho atribulado ou pouco esclarecido. O filme alimenta a confusão imagética numa ode aos delírios da perdição de Edward e, depois da subida do Rio Yangtze, foca na determinação de Molly, no seu desespero danado que espalha risos e telegramas à sua passagem. O tom auxilia à transparência e embrulha o enredo nos caminhos tumultuosos da tragédia humana.
Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Manuel Seatra.