A Canção de Lisboa, primeira longa-metragem sonora de produção inteiramente nacional, surge com o Estado Novo, em 1933. Contudo, o grande público só a viria a conhecer a partir de 1957, ano em que nasce a Radiotelevisão Portuguesa. Tendo José Cottinelli Telmo como realizador, o filme inaugura o género da Comédia à Portuguesa. Nesta viagem ao passado, retomamos o clássico como forma de refletir como a censura e a ideologia do antigo regime afetou a cultura do país até aos dias de hoje.
Vasco Leitão (Vasco Santana) é um estudante da Faculdade de Medicina de Lisboa que reprova vezes sem conta por estar mais interessado em arraias do que nos livros de anatomia. Vive às custas das suas tias ricas de Trás-os-Montes, às quais gaba ser um grande doutor; estas decidem ir visitá-lo à capital e Vasco tem de engendrar um plano para as convencer do descrito. Entretanto, está num romance com Alice Costa (Beatriz Costa), costureira, filha de um alfaiate. O pai desta não vê a relação com bons olhos, mas depressa muda de ideias ao aperceber-se de uma oportunidade para ficar com o seu quinhão da fortuna das tias de Trás-os-Montes.
Tive a oportunidade de ver o filme pela primeira vez no espetáculo “A Canção de Lisboa – do Teatro ao Cinema”, promovido pelo Cineclube Ronca em colaboração com a Câmara Municipal de Elvas, que digressou pelas freguesias do concelho. Constatando que era uma comédia de 1933, não tinha muitas expetativas, pois o tempo tem o seu peso. Porém, não podia estar mais enganado. A Canção de Lisboa mantém-se objeto capaz de fazer rir apesar da sua idade e dos empecilhos da censura, o que lhe confere ainda mais mérito.
A censura não foi inventada pelo Estado Novo. Com efeito, os registos de censura mais antigos de que há memória remontam ao reinado de D. Afonso V (século XV). Da Inquisição à Real Mesa Censória do Marquês de Pombal, passando por períodos de abertura e retração durante a Monarquia Constitucional, Primeira República e por fim, no Estado Novo, a liberdade de expressão é que a tendência invulgar na História de Portugal. A censura no cinema nunca atingiu tanta expressão como na imprensa, literatura ou teatro, porque a própria sétima arte nunca foi tão significante no nosso país como os anteriores. Na década de 30, por exemplo, menos de um terço da população tinha acesso aos cinemas, que se concentravam nas zonas urbanas.
Mesmo assim, não deixou de haver cenas cortadas aqui e ali. Quanto aos filmes estrangeiros, era proibida a sua exibição se fossem dobrados ou falados em língua portuguesa (à exceção daqueles produzidos no Brasil). Assim, as produções estrangeiras eram exibidas no idioma original, inacessíveis a grande parte da população, que era analfabeta. A própria legendagem era censurada, substituindo-se termos como “prostituta” por “mulher” (palavras que os censores talvez achassem sinónimas). Podemos argumentar que se fazia pior do outro lado da fronteira, em que os filmes eram dobrados em castelhano e se metia palavras na boca dos atores, de maneira que nem os que percebessem a língua original pudessem confrontar as legendas. Curiosamente, estas tendências culturais sobreviveram ao fim dos regimes salazarista e franquista, sendo em Portugal incomum dobrar-se filmes para adultos e repugnando os nuestros hermanos a leitura de legendas.
No que respeita o género cinematográfico que A Canção de Lisboa iniciou, a Comédia à Portuguesa, desenrolou-se entre as décadas de 1930 e 1950. Inspirada nos teatros de revista, é caracterizada por histórias leves da pequena-burguesia lisboeta, acompanhada por momentos musicais, de fado e folclore. Eram um instrumento indireto e secundário de propaganda do regime, que canaliza mais os seus esforços propagandísticos para filmes mais “ortodoxos”, como seja Feitiço do Império (1940), de António Lopes Ribeiro. António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional, chegou mesmo a afirmar que as comédias “eram o cancro do cinema nacional”.
A verdade é que foram comédias como A Canção de Lisboa que ficaram no coração do povo. E, paradoxalmente, aquelas que mais contribuíram para enaltecer as qualidades do regime. Num período entre guerras mundiais, findada a balbúrdia da Primeira República e aliviando-se as consequências económicas da Grande Depressão, Portugal surge como um destino calmo e ordeiro. A narrativa das comédias à portuguesa, portanto, acaba frequentemente com os personagens a superarem as suas diferenças e a aquiesceram ao ideal da paz social.
Talvez seja por este motivo que no pós-Revolução houve um movimento contra a exibição do filme, tendo sido os atores apelidados de “fascistas” por colaborarem com o Estado Novo. Politiquices à parte, A Canção de Lisboa é um filme simples e agradável, que conquistou o coração das massas e nos faz rir sem pensar em temores de maior. No cenário caótico do mundo atual, faz-nos falta um pouco disso.
Artigo escrito por Rodrigo Fialho. Uma iniciativa Associação Coletivo Artístico 7350.