É normal haver drama na época dos Óscares, e, este ano, há drama para produzir energia suficiente para um país pequeno. Há uma que claramente sobressai: Emilia Pérez. Toda a gente aparentemente concorda que é o pior filme que alguma vez viu, o pior do ano, talvez de sempre. Digo “toda a gente”, mas, claro, nem toda a gente diz isso. Claro, a “pessoa” no centro disso que aparenta não concordar são os votantes da Academia, sendo que é o filme do ano com mais nomeações para os Óscares. Isto tem inflamado ainda mais o ódio das pessoas em relação a este filme. Eu, pessoalmente, não partilho deste ódio e acho-o profundamente fascinante e até estonteante. Isto porque, quando vi este filme, genuinamente gostei dele e fiquei surpreendida quando fui ao Letterboxd e vi imensa gente a odiá-lo (nessa altura, ainda não tinha sido visto por muita gente: a média de pontuação do Letterboxd era à volta de 3.4, sendo que agora é 2.3), e é por isso que decidi escrever isto.
Eu acho que uma razão porque muita gente está a odiar Emilia Pérez é porque está a encará-lo de uma forma que não corresponde ao seu tom. Em primeiro lugar, vejo muitas pessoas criticá-lo dizendo, “isto não é um filme latino-americano”, e, bem, óbvio. Isto é dos filmes mais franceses alguma vez produzidos e não está, nem de perto, a tentar ser outra coisa. E não acho que haja algo inerentemente errado nisto. Não existe nem de perto tanto ódio, por exemplo, ao Argo, que é obviamente um filme profundamente americano e não está a tentar ser outra coisa, enquanto se alimenta de estereótipos que, na minha opinião, são muito mais ofensivos, pois é um filme que se propõe a retratar um acontecimento real e não constrói uma fantasia que brota da realidade – a essência do musical como género. Emilia Pérez é um filme francês que é situado no México, um México que talvez seja mais uma ideia – e isto poderá ser criticado (já vou aí) – e não tenta ser outra coisa, especialmente não um filme latino-americano – se se quiser ver um filme latino-americano deste ano, recomenda-se Ainda Estou Aqui, Motel Destino, ou Pepe. Mas se alguém vai ver Emilia Pérez, que não se engane em pensar que vai ver outra coisa que não seja um filme francês.
Acho que outra coisa que está a causar confusão nas pessoas é que Emilia Pérez aparentemente se enquadra no género de drama social, maioritariamente por causa da sua protagonista trans. No entanto, não o é. Emilia Pérez não é um filme sobre a realidade da transição de género. Nem sei se é um filme particularmente interessado numa realidade em particular, apesar de estar interessado numa realidade. O que Emilia Pérez tem interesse é em ser um filme sobre amor e solidariedade entre mulheres, não interessando se sejam cis ou trans, e as complexidades emocionais nisto. Tematicamente, não é muito diferente de, por exemplo, muitos filmes do Pedro Almodóvar. Questões de políticas identitárias não estão no foco deste filme. As personagens são como são de uma forma muito “matter of fact”. Elas são trans ou são cis, e a sua identidade não é particularmente problematizada – são apenas isso. Não é um filme que particularmente explora questões da política de ser trans ou até da identidade nacional mexicana (e talvez seja por isto que haja tanta reação negativa por parte do público latino-americano), é um filme de e sobre sentimentalidade sincera. E é por isto que este filme entra num território de camp – como Susan Sontag diz, camp não é político (apesar de, na minha opinião, muitas vezes coexistir com uma mensagem política, e este filme é definitivamente político, só não é de uma forma tão central como se pode pensar). É por isso que as comparações com Crash e Green Book não fazem muito sentido, visto que estes filmes, de facto, têm o objetivo de dar uma lição sobre temas e realidades sociais.
Eu acho que é esta sentimentalidade sincera que torna Emilia Pérez genuinamente um filme interessante e entristece-me que a maioria das pessoas está a ler este filme completamente ao lado, não vendo o que poderá ser aprendido com este filme. O que Audiard está interessado é em explorar os conflitos dentro de cada personagem, seja esse conflito relacionado com género (Emilia), classe (Rita), ou nacionalidade (Jessi), e ele fá-lo de uma forma extremamente sincera e que não é nem de perto pretendido como caricatura ou crueldade – simplesmente lendo as entrevistas com o realizador se consegue perceber isto. Será o retrato da transição perfeita ou realista? Claro que não, mas desde quando é que o género musical se preocupou com realismo? O que aconteceu a perceber que nem tudo tem que ser encarado de forma literal e que a alegoria existe?
Eu estou genuinamente incrédulo com a forma como muita gente está a reagir a certas cenas de uma forma completamente ácida. Por exemplo, a cena da vaginoplastia. Quando eu a vi, eu esperava que fosse uma das cenas que as pessoas iriam adorar. Porque, quer dizer, não é fantástico que existe uma cena incrivelmente pateta e campy sobre procurar cirurgia de afirmação de género em que cirurgiões e pacientes dançam numa clínica extremamente estilizada que referencia as coreografias de Busby Berkeley? Não sei, para mim foi das coisas que mais me entusiasmaram este ano. (E, já que estamos aqui, Busby Berkeley tem uma cena musical incrível em que literalmente é incorporada violência doméstica e homicídio e eu acho que é das cenas musicais mais incríveis de sempre. Cenas musicais podem ser sobre tudo, até coisas macabras. E isso não é uma caricatura). É por isto que acho que o facto de que o espanhol no filme não é perfeito não é verdadeiramente importante (apesar do quão mau o espanhol é, é bastante exagerado na discussão online). Isso simplesmente não é o ponto do filme.
Vi muitas pessoas a descrever o Emilia Pérez como uma caricatura irónica, mas o que realmente é, é uma exploração sincera de conflito emocional interno e uma exploração sincera do tema da redenção e os seus limites (e é extremamente católico nesse sentido). Não está a tentar reabilitar cartéis criminosos ou a caricaturar símbolos culturais, mas sim está a usar estes como motivos para exploração emocional. Acho válido criticar isto, esta certa superficialidade que o filme tem, e acho que esta é uma das suas verdadeiras limitações. Muitas vezes parece que apenas usa situações políticas para este outro objetivo, criando comentário político meio-cozinhado que não leva a lado nenhum – por exemplo, durante o “El Mal”, aparenta uma crítica à burguesia nacional de países do sul global, mas nunca chega a nenhum ponto crucial, nunca chega ao seu verdadeiro papel na opressão das classes trabalhadoras destes países, especialmente as mulheres, nem a sua cumplicidade com o neocolonialismo – mas isto não torna este filme em algo insincero, torna-o, sim, camp, pois a política não está no seu foco, mas sim a sentimentalidade e o melodrama. Talvez por isto tenha sido um erro colocar este filme como sendo passado no México, pois distrai o público do que verdadeiramente é: um melodrama musical camp. Mas, por outro lado, percebo esta escolha de Audiard, pois, na verdade, o que Emilia Pérez é, é uma versão (profundamente) francesa de uma telenovela mexicana. Talvez o núcleo camp francês com uma máscara mexicana seja essencial para este filme e para torná-lo numa visão única e uma das que mais entusiasma este ano. É uma experimentação fascinante de Jacques Audiard, que, normalmente, não é um realizador descrito como sendo camp – mas acho que artistas podem e devem sair da sua zona de conforto. Se acho que merece ser o filme com mais nomeações para Óscares do ano? Talvez não, mas acho que, sim, é entusiasmante que um filme tão distintivamente francês, com uma proposta tão fora do normal e com uma estética tão camp (que podia até ser mais) está a ter tanta atenção de prémios, e este não é o típico “filme sobre um assunto social importante” – porque, verdadeiramente, Emilia Pérez NÃO é isso, e NÃO está a tentar ser isso, mesmo que dialogue com esses temas – e muitos filmes camp fazem exatamente isso, não é exatamente algo inédito. O que talvez seja inédito, seja um filme assim ter tanta atenção tanto do público como institucional.
Artigo escrito por Jasmim Bettencourt.