O fantasma de um operário que possui a maquinaria de uma fábrica, um espírito revolucionário que tosse dentro de um aspirador, uma esposa que volta ao seu marido na forma de um aspirador. A Useful Ghost faz parte daquele grupo de filmes que nos trazem premissas estranhas e abalam o nosso mundo com a inteligência com que constroem a sua mensagem. Trazendo os mortos do passado de volta, presos a máquinas e eletrodomésticos, Ratchapoom Boonbunchachoke faz-nos olhar para a realidade da opressão do trabalho, do desenvolvimento capitalista e da heteronormatividade de uma forma sagaz, usando um humor profundamente queer que faz com que a sua crítica social e o peso emocional deste filme atinjam ainda com mais força.
Começando como uma simples história de assombração de uma fábrica de eletrodomésticos, A Useful Ghost vai-se desenrolando, surpreendendo-nos com o tamanho da sua crítica social. O que primeiro parece ser um retrato humorístico da opressão do trabalho vai revelando os seus tentáculos, aprofundando a sua crítica para todas as instituições do capitalismo: a família, o estado, a propriedade privada. Estes fantasmas que possuem eletrodomésticos revoltam-se contra a sua utilidade, assombram os sonhos dos tiranos, e colocam em causa as relações afetivas humanas, abrindo a possibilidade de relações amorosas e sexuais entre vivos e espíritos. Cada uma destas camadas vai sendo revelada lentamente, com um sentido de precisão que nos atinge de surpresa. Quando menos esperamos que este filme vai chegar lá, ele chega das formas mais surpreendentes.
Desde o patamar mais íntimo, como a relação entre o filho de uma empresária e a sua mulher falecida, ao patamar mais abrangente, como a revolta dos espíritos dos revolucionários mortos pelo estado tailandês, a crítica social de Boonbunchachoke estende-se sem se gastar ou se tornar superficial, fazendo com que olhemos para o pó que cobre todas as superfícies do nosso planeta – o pó da opressão, o pó do capital. De tal forma que até os próprios fantasmas, mesmo no seu regresso revoltoso ao mundo dos vivos, podem ser manipulados por este sistema. Boonbunchachoke não tem medo de levar todas as suas propostas à sua conclusão lógica, tornando este num dos filmes mais eficazes dos últimos tempos, trazendo um ar fresco ao ar empoeirado do cinema, que também está submetido a este pó capitalista.
As qualidades deste filme não se resumem ao seu conteúdo crítico, mas são enaltecidas pelo caráter onírico da sua imagem e som, que nos envolvem num sonho que nos transporta entre as suas várias histórias que se intercalam de forma suave e convidativa. Todo o filme nos abraça no seu realismo mágico que dá força às emoções contidas mas potentes presentes na sua história e nas suas imagens, com notas de harpa que nos hipnotizam.
A Useful Ghost é um filme que nos conquista com o seu charme, com uma realização precisa, um humor particular e inteligente que nos apanha de surpresa, e uma queerness deliciosa. Sendo a sua primeira longa-metragem, Boonbunchachoke surpreende profundamente, fazendo-nos olhar para o pó que nos sufoca, que se acumula em todas as superfícies, e dando-nos pistas sobre como limpar esse pó.
Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.