“Fiction here is likely to contain more truth than fact” – Virginia Woolf, em A Room of One’s Own
Recife, 1977. Um homem em fuga de um passado atribulado regressa à cidade que tinha abandonado. Fugido da ditadura militar, começa uma existência como um fantasma numa cidade habitada por mais destes fantasmas subalternos. Seguindo a sua história, conhecemos esta miríade de personagens ecléticas que, em conjunto, são partes de um fresco em que a História de um país ganha vida. Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho apresenta-nos uma carta de amor à sua cidade assombrada pelos espectros de um passado mal resolvido. Um filme com várias partes e que brinca com vários géneros, este é quase como um monstro do Frankenstein, surpreendendo pela forma harmoniosa em que as suas partes contrastantes se completam – quase um milagre cinematográfico.
Indo do thriller político ao creature feature, O Agente Secreto brinca com o real e o imaginado, com o passado e o presente, fazendo-nos refletir não só sobre o período da ditadura militar do Brasil mas também sobre a forma como este passado tem repercussões no nosso presente, não sendo o nosso passado completamente resolvido se não for confrontado de forma séria. Através deste filme, Mendonça Filho revive memórias e fantasmas através da magia do cinema, trazendo uma possível catarse a este passado por resolver.
Estes fantasmas são tanto estes personagens cujas histórias são perdidas e esquecidas com o tempo como também os edifícios de uma cidade em mudança e que contêm tantos segredos em si. Através desta quimera cinematográfica é dada vida a esta memória contida nestes edifícios que resistem, reconhecendo tanto a sua seriedade como o seu humor.
Esta viagem fantasmagórica, no entanto, não seria a mesma sem os atores que são possuídos e lhe dão carne. Como nosso companheiro de viagem, temos Wagner Moura que incorpora este personagem que começa como um mistério, mas que imediatamente nos afeiçoamos pelo seu charme, esta afeição crescendo à medida que o vamos descobrindo. Moura é assim o verdadeiro centro emocional desta jornada, conseguindo ser cómico e sério de forma fluída e eficaz. No entanto, não é apenas ele que surpreende, sendo rodeado por um elenco eclético de intérpretes que dão vida a este filme múltiplo, sendo talvez o maior destaque Tânia Maria, que rouba todas as cenas em que entra, trazendo uma leveza carismática inigualável.
Dentro do que é uma ficção louca, encontramos em O Agente Secreto algo de extremamente verdadeiro e catártico. Como foi dito por Virginia Woolf, a ficção talvez contenha mais verdade do que os próprios factos, pois convida-nos a uma viagem de emoções e reflexões estimulante que nos faz confrontar com os nossos fantasmas pessoais e coletivos. Neste filme, Kleber Mendonça Filho coloca um amor imensurável não só pela sua cidade, mas pelo próprio cinema, brincando com narrativas e géneros. Desta forma, traz esta memória para o nosso presente e faz-nos refletir sobre como o passado, o presente e o futuro não são independentes. Para além disso, aponta para o facto de que monstros imaginados talvez são menos assustadores e perigosos do que monstros reais, que não estão só no passado, mas que nos assombram no nosso presente. Talvez, quem sabe, estejam presentes dentro de todos nós.
Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto de Jasmim Bettencourt.
