Pelu é um projecionista num cine-clube municipal em Córdoba, Argentina. Quando o cine-clube perde parte do seu financiamento da câmara municipal, Pelu perde a sua posição de emprego e passa a trabalhar como guarda-noturno do cine-clube. Com a redução do seu salário, Pelu perde a capacidade de pagar a sua renda então, secretamente, passa a viver no cine-clube. Lentamente, o cinema transforma-se num albergue, não só para si, mas para várias personagens subalternas da cidade. Num momento do capitalismo tardio em que o lucro se sobrepõe à cultura e o humano, The Night is Fading Away surge como um grito inquieto, mas caloroso. Ramiro Sonzini e Ezequiel Salinas constroem uma verdadeira fábula em que o espaço do cinema se transforma num portal, numa dimensão paralela, em que os que sentem mais o peso opressor do capital podem viver os seus anseios e as suas fantasias.
Com uma imagem suave que nos faz lembrar os leves sonhos da Velha Hollywood, somos transportados para um mundo da noite em que é centrada não só a história deste projecionista, mas também a história de um grupo de sem-abrigos e uma cam-girl. Com um passo lânguido, vamos conhecendo este elenco de personagens, ao mesmo tempo que vamos conhecendo os segredos deste cine-clube – que é uma personagem por si só – e somos envolvidos pela sensação onírica deste filme. Da mesma forma como sonhos podem revelar algo mais profundo sobre nós, também este filme parece fazer isso, revelando as tensões sociais dentro da sociedade argentina (e não só), seja através da violência que o estado exerce sobre a população sem-abrigo ou através da forma como a sociedade vê o trabalho sexual. É percorrido um sonho de uma noite argentina, mas este sonho revela em si o pesadelo do capitalismo cada vez mais desenfreado e desumano.
Ao mesmo tempo, este filme é uma carta de amor ao cinema e aos seus espaços, não só pela centralidade do espaço do cine-clube, mas pelo olhar do filme sobre os seus personagens e a forma como o cinema permite a eles construir uma certa comunidade que existe nesta realidade noturna e sonhada. O cinema torna-se não só numa oportunidade de escape, mas também numa oportunidade de libertação e de emancipação. Sonzini e Salinas transpõem nestas imagens não só um amor profundo, mas também sublinham a capacidade que o cinema (e a cultura em geral) tem em permitir-nos de nos desamarrar da opressão do dia-a-dia, permitindo-nos sonhar por algo diferente – talvez por isto é a cultura a primeira a ser atacada pelo capital e qualquer sistema opressor.
The Night is Fading Away é um filme sonhador, existe numa dimensão e num ritmo seu, e convida-nos calorosamente a entrar nele, a conhecer Pelu e tantas outras personagens, a descobrir algo de belo e profundamente humano. Aqui é dado ao cinema a possibilidade de uma nova vida, e a nós uma possibilidade de um novo olhar sobre o mundo.
The Night is Fading Away venceu o Grande Prémio Cidade de Lisboa no DocLisboa.
Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.
