Confrontado com o desafio de fazer um filme sobre a própria vida, Paul B. Preciado, que nunca tinha feito um filme na vida, assume que o caminho lógico é fazer uma adaptação do icónico livro de Virginia Woolf, Orlando: A Biography, pois, como afirma, a sua biografia já tinha sido escrita nesse livro antes sequer de ele nascer. Partindo desta obra-prima literária, em que se segue a vida de um aristocrata inglês que vive ao longo de vários séculos e cujo sexo muda depois de um período de sono, Preciado constrói um manifesto cinematográfico que não só nos convida a refletir sobre questões de género cada vez mais pertinentes no mundo contemporâneo, como também nos convida a refletir sobre o próprio meio cinematográfico, desconstruindo em simultâneo estes dois conceitos.
Juntando várias vozes trans, Orlando, A Minha Biografia Política torna-se em algo muito mais do que um projeto pessoal, tornando-se num megafone de um coro de vozes que nos contam as suas histórias de forma profundamente honesta. Mas este não é um simples documentário, tal como não é uma simples adaptação cinematográfica de um romance. É os dois ao mesmo tempo – e nenhum dos dois. Misturando realidade e ficção, a fronteira entre o que é a obra literária de Woolf e o que é a vivência destas pessoas que surgem no ecrã a contar as suas histórias é desconstruída, dando assim um novo poder à obra de Woolf e uma nova forma de expressar estas vivências num meio documental.
A desconstrução da ficção também é feita através deste coro de vozes, em que diversos atores, em momentos diferentes, interpretam Orlando, refletindo diferentes momentos da vida do personagem, enquanto partilham as suas experiências como pessoas trans. Desta forma, Orlando é desconstruído como personagem e transformado numa ferramenta para desconstruir os (pre)conceitos de género da sociedade normativa. Desta forma, é realçado o que de revolucionário existe na obra de Woolf, trazendo-a para os tempos de hoje. O próprio meio cinematográfico é também constantemente desconstruído, como se este fosse um filme em que se veem as costuras. O processo de casting, o processo de criação, e o próprio processo de gravar o filme transparece ao longo do filme – o próprio filme é em si uma desconstrução e uma reflexão do próprio meio.
E através deste processo de desconstrução, barreiras são derrubadas, vozes são amplificadas, e um lugar. O cinema, que historicamente é um meio dominado pelo homem cis hétero branco burguês, é conquistado como um lugar de expressão para um outro tipo de expressão e manifestação. Em Orlando, A Minha Biografia Política, o cinema torna-se trans e não-binário, não sendo caracterizável como documentário ou ficção, saindo desse binário, contendo elementos dos dois e talvez de algo mais. As suas costuras e a sua história de violência são expostas ao olho nu. No entanto, o seu poder como ferramenta para a amplificação de vozes pouco ouvidas e o seu potencial de transformação política também são transparecidas.
Orlando, A Minha Biografia Política funciona como uma lupa na nossa sociedade normativa. É um filme que nos convida a interagir com ele, refletindo não só sobre conceitos de género, mas sobre o próprio cinema e a arte e a sua aliança a narrativas normativas. É um filme que se vai desconstruindo e propõe uma visão cinematográfica nova: uma visão trans, um cinema não-binário.
Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.