Mondim de Basto (Trás-os-Montes) acolhe a 2.ª edição do Trás-os-Filmes, Festival de colheita nacional focado em micro e curtas-metragens que decorre nos dias 7 e 8 de outubro. Este ano, os festivaleiros vão assistir a um certame intergeracional, ou assim evidenciam as curtas “Água Morna”, de Pedro Caldeira e Paulo Graça, e “Só Nós Dois”, de Carolina Aguiar.
Água Morna
A caminho dos 100 anos, o Sr. José Manuel Água Morna encontra-se lúcido e de boa memória. Em entrevista, recorda o trabalho nas minas de carvão, os afazeres de soldador e de fazer pela vida em Moçambique, aquando da Guerra Colonial. “Desenrasquei-me bem, graças a Deus”, refere com conformado alívio. Teve sorte e engenho, combinação necessária para ter a oportunidade de dar este testemunho antes de seguir viagem.
No entanto, os realizadores Pedro Caldeira e Paulo Graça depressa revelam o que os levou a conversar com o senhor de Viana do Alentejo – cuja beleza rural e envelhecida não passam despercebidas no filme. É que, a par dos ofícios monetários, o Sr. José lapidou uma aventura enquanto contador de histórias. Concretamente, ao moldar pedaços de madeira, formava pequenas pessoas e os seus animais. Construía autênticos cenários campestres, com direito a moinho e comboios de brincar – tudo enquanto autodidata. O neto, com ternura, chama-lhe “engenhocas”, e os exemplares que vemos no documentário comprovam-no.

Todos temos de entreter o tempo e eu argumento que matá-lo em troco da criação é um crime bem justificável. A escultura, percebe-se pelo trabalho que vislumbramos, permite-lhe pensar com as mãos. Neste processo, concretiza aquilo que imagina, seja o objeto mundano ou possuído. Em contraste com a simples e ondulada figura do porco amadeirado ou o estreito semblante humanóide, o Sr. José compõe figuras monstruosas, os seus diabos. Quando comparados às figuras do real, sobressaem pela irregular complexidade. Testemunham, enfim, o lado mais abstrato e fantástico da conceção humana. Feitos endiabrados e porventura catárticos que, apesar de manifestarem algo de maligno, têm a vantagem oculta de não dar cadeia.
Com “Água Morna”, Pedro Caldeira e Paulo Graça filmam um rosto de aldeia em linha com a matéria documental de Tiago Cerveira. Pese embora o realizador de Oliveira do Hospital (Coimbra) seja mais expansivo e social nos seus retratos, como vemos na curta “Pitões das Júnias”, esta síntese de vida e obra continua a ter o seu interesse. E nem me atrevo a questionar a sua importância na preservação patrimonial de Portugal, que não deixa de ter no seu inverno demográfico histórias valiosas para contar.
Só Nós Dois
Dos legados da terceira idade passamos às preocupações da primeira. Fase da vida cada vez mais longa e atribulada, com estudos científicos a alertar para a crescente degradação da saúde mental dos jovens adultos. Neste cenário, importa sublinhar o lado positivo: estamos, enquanto sociedade, mais disponíveis para falar sobre o tema. Em paralelo com os avanços da psicanálise, o cinema tem-se predisposto a comentar e a abrir diálogos sobre saúde mental. “Só Nós Dois”, ficção escrita e realizada por Carolina Aguiar, é uma das mais recentes amostras da relação entre os transtornos da psique e as ilusões cinematográficas.
Restos de comida que se confundem com sujidade são o que desde logo capta a atenção. Eça (Inês Sá Frias) brinca com eles com a ponta do dedo, enquanto aguarda o salto da torrada; parece letárgica. Isto acontece em plano fechado e a gramática visual do filme mantém-se sobretudo neste registo. Há momentos em que a câmara de Aguiar detém-se na face de Frias para lá do necessário. Contudo, faz um bom trabalho em isolar-nos no seu espaço mental, que cedo percebemos estar desequilibrado. Afinal, não se faz terapia por razões insignificantes. Ainda que a combinação de recém-licenciada com o desemprego seja suficiente para endoidecer qualquer um.

Convém reparar, contudo, que a dedicação da realizadora não está no desenvolvimento dos contornos anatómicos da doença de Eça, antes nas suas consequências, na sua função inibidora. Cedo assistimos a uma cena em que conversa com o namorado, que a alegra pelo facto de a consulta ser por videochamada. “Perdes menos tempo e passas mais tempo comigo”, explica Guilherme (Francisco Monteiro Lopes), antes de sorrir levemente. A verdade é que esta companhia não a ajuda a pagar a renda, nem tão pouco a revelar aos pais que precisa de ajuda. O que está na origem de um nervosismo latente e de muita vergonha.
Questões de saúde mental à parte, esta incapacidade de agir justifica-se apenas pelo embaraço. O mesmo não podia dizer a personagem de Ágata de Pinho em “Azul”, que encontra na mãe uma catalisadora de desgraça. Em “Só Nós Dois”, existe uma rede de apoio à qual se pode recorrer – basta um telefonema. Por ser uma mulher sob influência, a personagem de Frias tarda essa chamada. Experimenta o tédio e a aflição; entrega-se à cinefilia (subentende-se pelos cartazes na parede) e às camisolas de malha. Confortos que lhe valem de pouco, quando defronta as suas amarras psicológicas.
A descoberta da protagonista acaba por surgir com duvidosa espontaneidade, como se se tratasse de um atalho, mas é determinante para a lógica do filme. Uma lógica que se prende com o isolamento da doente mental num ambiente de precariedade socioeconómica. A mensagem é clara: os problemas da mente intensificam-se em situações de vulnerabilidade e vice-versa. No final, despedimo-nos de Eça mais esperançosos, mas conscientes de que a sua luta está longe de terminar.