Viagem a Portugal é um filme de título enganador que denuncia uma verdade desagradável. Esta pérola de 2011, realizada e produzida pelo cineasta brasileiro Sérgio Tréfaut, traz ao grande ecrã nomes como o das portuguesas Maria de Medeiros e Isabel Ruth, ou do senegalês Makena Diop (a insistência na menção das nacionalidades, neste caso, tem toda a pertinência). O nome da obra, homónima de outra de Saramago, sugere um passeio de carro por entre as planícies alentejanas ou pelo leito abobadado do Douro; trata-se antes de uma digressão pelos corredores inóspitos da indiferença burocrática.
Maria (Maria de Medeiros) é uma médica ucraniana que vem a Portugal juntar-se ao seu marido senegalês, Greco (Makena Diop), também ele médico. O “exotismo” do casal faz soar os alarmes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em particular da inspetora (Isabel Ruth), personificação da cegueira enviesada das leis procedimentais. Maria nunca chega a sair do aeroporto: ela e o marido (que, entretanto, ingressa o circo) são sujeitos a vários tipos de violência, até que a primeira acaba recambiada a Moscovo – na ausência de uma ligação no dia seguinte a Kiev –, destino considerado “semelhante o suficiente”.
A trama tem inspiração verídica e, embora não tenha conseguido encontrar a original, exemplos não faltam da desumanidade desses serviços. Relembro o caso do homicídio de Ihor Humenyuk, também ele ucraniano. Este emigrante irregular escolheu Portugal para laborar, mas acabou asfixiado até à morte num “Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária”. O caso permanece envolto nalgum mistério. Contudo, sabe-se que os envolvidos tentaram ocultar o crime e só 17 dias depois, altura em que foram detidos pela Polícia Judiciária, é que o caso veio a público. Isto perigou o SEF a uma dramática… mudança de nome, mas até disso se safou em virtude da pandemia de COVID-19.
Este caso mostra que o retratado no filme é inequivocamente plausível. A cena que mais me chocou concerne à revista que a inspetora faz a Maria. Manda-lhe que se dispa e, após calçar umas luvas, procede à investigação do ânus e vagina da suspeita. A revistada geme, sôfrega, e assiste-se aos ganchos que lhe sustinham o penteado aprumado cair no chão, qual dignidade. Noutra cena, jaz inanimada no pavimento, sob o olhar do marido que é arrastado pelos seguranças e, com conhecimento de causa, alerta para o facto de Maria ser diabética e necessitar de insulina. Com toda a calma, a inspetora procede à ordem de ministração do remédio: “Dê lá isto à mulher”. Interessante é também o momento em que Maria tenta subornar a inspetora e esta, com ares de superioridade despretensiosa, diz que “Isto, aqui, não é lá como no seu país”. Irónico uma vez que, instantes depois, está a obrigar Maria a assinar uma declaração em português, língua que a ucraniana não entende – prática de legalidade duvidosa.
Não sou imigrante nem sofro dos males que os afetam. Noutra perspetiva, não é preciso sê-lo para nutrir empatia ou reconhecer que a problemática está na ordem do dia. Europa fora e à volta do mundo, o tema da imigração altera a composição dos parlamentos e os mais básicos fundamentos da vivência política. A hesitação das Esquerda e Direita tradicionais, que a ignoraram ou estigmatizaram como não-tema, deu palco ao extremismo. Partidos antissistema ganharam espaço e legitimidade democrática, fazendo da imigração pedra-angular dos males sociais cuja demolição de todo o sistema político vigente – uma família de caloteiros concertados – é a única solução. Assim, o diálogo político empobreceu-se, entre os xenófobos e os ideólogos do paraíso. Exortam o eleitor ao suposto roubo de que é vítima, daquilo que não tinha nem nunca terá.
Bem vistas as coisas, a maioria concorda com as duas seguintes premissas. A imigração é imperiosa à Economia portuguesa, tal como um telhado de vidro do país, tendo em conta a sua História. Por outro lado, o seu sucesso legal e moral não se reduz (ou não deve reduzir-se) à assinatura de um papel ou a um posto de trabalho, mas a um processo de integração que é longo, incómodo, tens custos e está sujeito a constrangimentos físicos número/tempo. Acredito que, em conversa sensata, se consegue arrancar determinada premissa a cada uma das partes.
Viagem a Portugal é um apelo ao humanismo. Os seus diálogos áridos e a sua fotografia a preto e branco são aquilo que se deve combater. A crueldade desqualificada daqueles que “seguem ordens” e a despaixão dos procedimentos rotineiros. Por muito má que seja a realidade, nem todos são prostitutas ou mulas de droga: e até esses merecem ser tratados com respeito, pois aí reside a Justiça a que se quer submetê-los. Maria, não sendo criminosa, foi tratada miseravelmente. Viu findar o ano atrás das grades. Ouve-se “Faz-me pena aquela rapariga ficar aí à noite”, da boca da inspetora, que saboreia um humanismo de ocasião, inventado. E o leitor, costuma inventá-lo?
Artigo escrito por Rodrigo Fialho. Uma iniciativa Associação Coletivo Artístico 7350.