O actor e realizador Edgar Morais redigiu uma carta aberta à Academia Portuguesa de Cinema, aquando do anúncio das nomeações aos Prémios Sophia:
“Academia,
Depois de vos ter submetido a minha rescisão, surpreendentemente, vocês perguntaram qual o motivo. Eis a minha resposta:
O anúncio feito na sexta-feira passada acerca dos nomeados deste ano para os Prémios Sophia trouxe à superfície vários problemas sérios relacionados com a Academia que demonstram a razão pela qual não posso continuar a ser membro desta instituição.
Ao ter tomado a decisão de nomear e anunciar publicamente a nomeação para apenas uma das interpretações no filme “Um Café e Um Par de Sapatos Novos” onde ambos os protagonistas são gémeos, e que partilham o mesmo tempo de ecrã e onde foram intencionalmente caracterizados pela produção de forma a ficarem fisicamente indistinguíveis, a Academia não só revelou e admitiu sem reserva alguma que os seus prémios e nomeações são ilegítimos e não se baseiam em mérito, como também não se preocupa com essa questão, mostrando assim a todos os seus membros, publicamente e em voz alta, não só que a própria associação não está certamente de forma alguma familiarizada com os filmes que nomeia, mas que, assumindo que os votos são de facto contados, a maioria dos seus membros também não está familiarizada ou nem sequer assiste aos filmes nos quais votam e que são por isso, naturalmente, tendenciosos nas suas escolhas, fazendo com que os seus prémios deixem automaticamente de ter qualquer valor para todos os nomeados e vencedores, passados e presentes.
Como poderia este reconhecimento ser uma honra ou ter qualquer valor para mim, tivesse sido eu o único nomeado, sabendo que a natureza única deste filme faz com que seja, como quem viu o filme pode atestar, objetivamente impossível para o seu público diferenciar e, portanto, preferir uma performance em detrimento da outra? Onde está a honra em ser reconhecido em grande parte pela atuação de outro ator? Como foi esta nomeação possível?
Ao recusar-se a reconhecer a situação ou a implementar medidas a fim de tentar corrigir um sistema que está agora provado como sendo, de forma irrefutável, uma farsa, a Academia mostra também a sua grave cumplicidade nestas ocorrências muito vulneráveis à manipulação, ao favoritismo e ao abuso de poder por parte da própria organização, dos seus organizadores e daqueles que a favorecem.
As bem conhecidas dinâmicas entre os organizadores e orgãos sociais da Academia, sejam eles os órgãos oficiais ou os não oficiais que operam nas suas sombras, e que mesmo assim exercem poder sobre a associação e os seus membros, e que são frequentemente contratados por e/ou empregam pessoalmente muitos dos membros da própria associação e as produtoras que a associação reconhece regularmente com nomeações e prémios, criam um conflito de interesses vergonhoso e sujeito a abuso, que facilita e promove o favoritismo e a corrupção por parte dos seus representantes e que influencia direta e indiretamente, quais os profissionais e projetos que são reconhecidos pela Academia. Dinâmicas estas que, de forma perigosa, impedem também que os membros possam manifestar-se com conforto e segurança contra a Academia, os seus representantes e associados e todas as suas ações sem medo de retaliação ou perda de oportunidades de emprego futuras naquilo que, só por si, já é um mercado de trabalho difícil para os profissionais da indústria cinematográfica em Portugal.
Além de ser financiada publicamente através da República Portuguesa e do Instituto do Cinema e Audiovisual, diretamente das contribuições dos bolsos de todos os contribuintes portugueses, a Academia recebe financiamento para as suas funções de outras associações e respetivos membros, e recolhe ainda, de forma sistemática, quotas financeiras dos seus membros compostos maioritariamente por profissionais de cinema da classe trabalhadora, representando por isso uma enorme responsabilidade que requer um alto nível de escrutínio e transparência em todas as suas ações, sejam elas financeiras ou relacionadas com o processo de seleção e votação para os seus prémios. Prémios esses que têm um efeito tangível e direto na vida e nas carreiras dos premiados e nomeados, sendo por isso crucial que haja integridade e transparência no processo de seleção e votação, algo que atualmente não existe, com o intuito de garantir uma cerimónia e associação mais honestas e livres de corrupção.
Sendo por isso necessário de imediato que:
a) Haja uma reestruturação dos organizadores e órgãos sociais da Academia, (que são todos brancos), para incluir uma gama mais representativa de vozes e etnias, que façam melhor justiça ao cinema português e aos seus profissionais;
b) Seja feita uma revisão e reestruturação completa da plataforma de votação para os Prémios Sophia como um esforço para, de forma comprovável e mais transparente, aceitar e validar apenas os votos dos membros que realmente veem os filmes em que estão a votar, quer na sua totalidade ou por um número mínimo de minutos previamente acordado e aceite pelos membros da Academia;
c) Seja contratada uma empresa independente para contar e verificar com exatidão de forma privada e responsável os votos para os Prémios Sophia, (tal como é a norma em outras cerimónias do género em todo o mundo), evitando assim a potencial manipulação de votos por parte dos organizadores da Academia e desta forma mitigar também os efeitos da dinâmica de poder que inevitável e injustamente, direta e/ou indiretamente, influencia quem é reconhecido pela organização ano após ano;
d) Seja criada uma plataforma gerida por terceiros e para que os membros possam, de forma anónima e segura, reportar quaisquer abusos, corrupção, subornos e favoritismos dentro da Academia para que possam ser devidamente investigados.
A comunidade do cinema de Portugal merece muito mais do que esta Academia, que de forma alguma pode afirmar representar os seus profissionais.
Espero que Portugal venha a ter a Academia que merece, uma organização legítima de prestígio e honra para a comunidade cinematográfica portuguesa.
Até lá,
Edgar Morais”
Podem ler aqui a crítica ao filme “Um Café e um Par de Sapatos Novos”.